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O universo em que vivemos é eterno

1988

Publicado originalmente em O Norte 07/02/1988. João Pessoa. Entrevista com Mário Novello.

Foto: Nasa

K. PINHEIRO: Prof. Mário Novello, a partir do início da década de 80 seu nome tem aparecido frequentemente na imprensa, especialmente como defensor de uma tese bastante polêmica nos meios científicos contemporâneos: a de que o universo em que vivemos nunca teve um início nem nunca terá um fim. Em que se baseia essa afirmação, professor?

M. NOVELLO: Bom, na verdade a argumentação maior é a de que o Universo nunca teve um começo. Se terá um fim, isso nós não podemos dizer ainda. Agora, a ideia de que nunca houve um começo é uma história longa. Talvez se devesse dizer o seguinte: a Cosmologia moderna começou – a data precisa desse início é de 1917 -, quando Einstein usou a sua teoria da relatividade geral para descrever o universo, isto é, a totalidade do mundo. E quando ele fez isso, descreveu um universo sem evolução, estático, onde o passado e o futuro eram idênticos ao presente.

Ao longo dos anos 30, descobriu-se que isso não era uma verdade, e que o universo não era um estrutura estática, mas evoluía. A medida em que se foi aceitando uma estrutura dinâmica para o universo e, nos anos sessenta, admitindo-se a ideia de que o universo está em expansão, começou-se a questionar e a pensar a partir de quando teve início essa evolução. Quer dizer, se houve um instante único, o qual se poderia identificar como a criação do universo. Um instante único a partir do qual tudo o que se chama de universo passou a existir. Bom, depois de muita discussão, teórica, aliás, porque a observação era pouca nessa época, a maior parte da comunidade dos cosmólogos aderiu à ideia, principalmente os ingleses, de que era inevitável que o universo tivesse tido um começo único de criação. Esse instante ficou chamado de “big bang”, a grande explosão inicial. Há alguns poucos bilhões de anos antes de nós, o universo, por razões absolutamente incompreensíveis para a Física, depois dessa grande explosão começou a se expandir e o espaço começou a aumentar seu volume, digamos assim. Bom, essa ideia começou a dominar no cenário dos anos sessenta, porém, vários pesquisadores, cosmólogos – não somente eu, mas em várias partes do mundo, como, por exemplo, na União Soviética, Meinkov e Orlov, os quais discutiram uma teoria semelhante à minha com o meu colaborador José Salim – chegaram à conclusão de que, na verdade, o universo não teve um instante único de criação, e sim, teve uma fase anterior colapsante (o universo colapsou), até atingir um raio mínimo, e aí, depois, começou a fase atual de expansão. Quer dizer, o universo se estenderia até o passado infinito, sem nenhum ponto singular que você pudesse identificar como sendo a origem, a menos desse raio mínimo, mas seria um raio mínimo de volume, de totalidade do que a gente chama de espaço e que não se identificaria com um ponto, quer dizer, um ente geométrico. Qual a origem dessa ideia? Bem, a origem é um pouco técnica. Nós la no CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) utilizamos para descrever o processo de interação entre campos de longo alcance – como o campo eletromagnético, responsável pelo Eletromagnetismo que a gente conhece trivialmente, e a gravitação, que é a força básica que domina o cenário da Cosmologia – mecanismos pelos quais o colapso do universo é sustado… Já os russos apelam para uma outra teoria que está ligada com outras partes da Física. Mas a conclusão a que eles chegam, curiosamente, é idêntica à nossa. E a estrutura que eles têm para o universo também é absolutamente igual à nossa. De tal maneira que, se você olhar para o universo como sendo uma estrutura única, você não pode separar o nosso modelo do modelo dos russos porque o resultado geométrico é o mesmo. Não sei se respondi bem a questão porque a questão é um pouco técnica. Mas a razão pela qual o universo não teve um instante único de criação se deve mais a processos de interação da própria Física com a gravitação, que domina o cenário da Cosmologia.

K. PINHEIRO: Como reagiu ou ainda reage a comunidade científica internacional a uma ideia tão revolucionária como essa do universo eterno? Existiria um certo conservadorismo entre os cosmólogos atuais?

M. NOVELLO: Eu diria o seguinte: com relação à ideia específica de um universo eterno, há uma série de vantagens de um certo ponto de vista e desvantagens de um outro ponto de vista. O problema é que a Cosmologia, como todo o resto da Ciência e da Física, ela é observacional. Não é suficiente você ter uma ideia preconcebida sobre o universo. Ela deve ser posta em teste observacional. No final, quem vai decidir sobre essa questão, que ainda hoje em dia não é uma questão resolvida completamente, é a observação. É a observação quem vai dizer se o universo teve um instante de criação ou não. O que a gente pode argumentar é o seguinte: se o universo teve um instante de criação, então a Física é incompreensível em sua totalidade. Porque esse instante mesmo de criação é incompreensível, a Física não tem a dizer aí, e muito menos no passado desse ponto inicial… Enquanto que, se o universo não teve um instante único de criação, então a Física pode, digamos assim, descrever toda a evolução do universo, desde o infinito passado até hoje e, eventualmente, até o infinito futuro… ou eventualmente até o instante em que o universo colapse talvez.

Se houve reação à ideia de um universo sem um instante único de criação, sim, houve. A ideia do universo com um instante de criação dominou os anos sessenta. Claro está que quando você começa a mexer numa ideia que não é assim a ideia padrão, começa a haver uma certa reação. E é muito mais difícil você mudar alguma coisa do que continuar com as ideias anteriores. Tanto nós quanto os russos sofremos reações. Mas, pouco a pouco, as dificuldade do cenário anterior vão aparecendo de maneira tão clara que esses modelos de universo sem singularidade vão começando a dominar. Hoje em dia se pode dizer com razoável segurança que já há um equilíbrio entre as duas ideias. Não é mais verdade que a maior parte dos físicos acredita que o universo teve um começo único explosivo, um “big bang”.

K. PINHEIRO: Ainda sobre a teoria que o senhor defende, é possível justificá-la com base em obervações e dados experimentais? Ou melhor, existem indícios observacionais que favoreçam a ideia de um universo eterno?

M. NOVELLO: Aqui o problema é delicado. Observacionalmente, o que nós sabemos é que o universo está em expansão, isto não significa, de jeito nenhum, que o universo teve um instante de criação. Significa que nós estamos numa fase expansiva. Se houve uma fase anterior colapsante, nós não temos indício nenhum. Há várias questões, porém, que seriam certamente mais facilmente compreensíveis se se admitisse que o universo não teve um instante de criação. Uma delas é o que os físicos chamam de problema do horizonte. Isso, grosso modo, é o seguinte: o universo é tão simétrico, as simetrias que existem no universo observável são tão grandes que é quase impossível de aceitar que durante tão pouco tempo de vida (alguns poucos bilhões de anos, segundo a teoria da explosão inicial), essas simetrias pudessem ser estabelecidas. Esse é o problema do horizonte, existem regiões do universo que nunca trocaram informações, e, no entanto, teriam quase as mesmas características, quase as mesmas propriedades. Ora, isso é muito difícil de entender, talvez seja o problema mais delicado do modelo explosivo. Ou seja: por que o universo apresenta homogeneidade em regiões que nunca trocaram informação? Outro ponto, indireto, é um problema que vem da Biologia. Fred Hoyle foi a pessoa que talvez mais tenha sustentado esse ponto. O argumento, que não é de nenhuma maneira conclusivo, vai na seguinte direção: a Biologia argumenta que se a vida não foi programada para existir, se a vida é um fenômeno ocasional, então o tempo que os cosmólogos estimam para a idade do universo, que é dez bilhões de anos, não seria suficiente para se formarem grandes cadeias de aminoácidos, que são a base do que a gente chama de vida. Do ponto de vista probabilístico, se precisaria de um tempo centenas de milhares de vezes maior do que o tempo de existência do universo proposto pelos defensores da teoria universo explosivo para que se gerasse qualquer estrutura que pudéssemos chamar de vida. Então, você vê que existem dois argumentos: um de natureza indireta, biológico, que não seria o argumento mais importante para a Cosmologia e um argumento mais importante que seria o fato de que não há tempo suficiente disponível no universo em que a gente vive para que a regularidade observada pudesse ocorrer. O modelo padrão explosivo tenta encontrar soluções através de esquemas tão sofisticados (fazendo recorrência à Microfísica, à Física das partículas elementares) que, na verdade, é quase uma demonstração da sua ineficiência para demonstrar realmente os fatos observacionais.

(…)

K. PINHEIRO: Algumas pessoas, inclusive cientistas e intelectuais de renome, são de opinião de que a Cosmologia é um ramo da Ciência extremamente especulativo, completamente desvinculado da realidade em que vivemos; sendo assim, num país como o Brasil, o trabalho de um cosmólogo não pareceria prioritário. Como o senhor contestaria esse argumento?

M. NOVELLO: Veja, esse argumento pode ser reduzido da seguinte maneira: o Brasil não precisa de cientistas que façam Física de vanguarda. Precisa simplesmente de técnicos que manipulem máquinas. Ora, essa era a visão de evolução científica e tecnológica que países desenvolvidos queriam impor a países subdesenvolvidos. E a razão simples: como a tecnologia baseada na pesquisa de vanguarda muda rapidamente, em uma década ela é praticamente irreconhecível. O Brasil, como qualquer país subdesenvolvido seria sempre um país importador de tecnologia de vanguarda. Um país que não tem pesquisa de vanguarda nunca vai poder competir com país algum. Então, nós seríamos sempre um país importador e esse é o mecanismo de desenvolvimento que queriam impingir à gente. Aliás, essa é a razão pela qual nos anos sessenta praticamente todos os físicos no Brasil foram canalizados para a Física do EStado Sólido. E o argumento (eu sei disso porque sofri esse problema na pele nos primeiros anos da “Revolução”) era que a Cosmologia era uma Física muito, como você diz, “especulativa”. Não era uma Física realista. Mas, o que é uma Física realista? Veja você o seguinte: primeiro, a Física de vanguarda só é utilizada pelas indústrias de vanguarda. O que se fazia de vanguarda na Bell Company que era, digamos, o centro de Física do Estado Sólido mais avançado, certamente não podia ser utilizado pelas indústrias nacionais na década de 60, talvez nem hoje, pois não tínhamos um parque industrial capaz de acompanhar a sofisticação da pesquisa. Então, o que acontecia? Mesmo os físicos mais importantes do Brasil nessa área estavam fazendo trabalhos para as indústrias americanas e japonesas, que podiam, essas sim, ser a ponte de passagem da Física de vanguarda para a tecnologia de ponta. então, serve aos grandes capitais internacionais que nós tenhamos simplesmente tecnólogos e não físicos de vanguarda. Vamos entrar noutro ponto: qualquer área da Física, da Química, da Medicina, do Jornalismo é igualmente importante se você é competente nessa área. Meu argumento é o seguinte: desenvolva-se em qualquer área desde que seja competente. É só na competência extremamente elevada que você vai fabricar os interesses. Você não vai seguir os interesses de outra pessoa. O que é importante não é seguir a moda, pois você estará sempre atrasado.

Entendo na especificidade da Cosmologia ou das Partículas elementares, que é outra área, digamos, especulativa, o ponto é que quando você faz uma área dessas há toda uma infra-estrutura colateral envolvendo a sua atividade. Por exemplo, para estudar a formação de galáxias você precisa de computadores de primeiríssima qualidade, de quarta geração, altamente sofisticados. Ao lado do cosmólogo, ou do físico de partículas, vão aparecendo necessidades colaterais que vão fazer desenvolver naturalmente a indústria sofisticada. A indústria sofisticada de computadores dá como consequência microcomputadores mais baratos. Então, é tolice pensar ou analisar a atividade científica em si.

Não existe atividade científica em si. Quando um cosmólogo como o Carlos Romero vem para cá, não é ele sozinho, que vai ficar fechado isolado na sua biblioteca. Ele vai ser um pólo, ele vai gerar uma série de discussões: com a atividade dele, com a qualidade do trabalho dele vai colocar em xeque os próprios professores de outros lugares que não fazem pesquisa. Vai criar toda uma crise em volta dele inevitavelmente. Crise essa daqueles que não querem fazer pesquisa, dos que dizem que a Universidade não é para fazer pesquisa. Nunca vi um absurdo tão grande. A Universidade é para fazer o quê? Para repetir? Então compremos macacos, papagaios… A atividade de um cientista por mais isolada que possa parecer, ela não deve ser discutida em si. É o que está em volta dela que é importante. É tolice dizer que a Cosmologia, a Física de Partículas ou a Teoria de Campos é, digamos, alienada da realidade. Alienados são aqueles que exatamente tentam trazer pra cá simplesmente reprodutores da tecnologia que foi criada com alta sofisticação nos outros países. Isso sim é que é ser alienado. É tornar o nosso país para sempre subserviente. O país só se liberta, hoje em dia, se você tiver alta qualidade em qualquer nível, científica inclusive. E como nós vivemos numa fase científica e tecnológica, certamente é por aí que você vai ter uma libertação.

K. PINHEIRO: O livro de sua autoria “Cosmos et Contexte” foi editado primeiro na França e somente agora uma editora brasileira se decidiu a lançá-lo no Brasil. Por que essa ordem inversa, professor?

M. NOVELLO: Vou começar pela segunda parte de sua pergunta. Por que a Editora Forense resolveu editá-lo? Ela resolveu editá-lo porque um filósofo francês, que acabou de passar sua tese de doutoramento com Deleuze, filósofo francês que esteve na moda durante alguns anos…

K. PINHEIRO: Da linha de Foucault…

M. NOVELLO: Exatamente. Esse filósofo junto com o próprio Deleuze tiveram acesso ao livro e argumentaram numa entrevista que o Brasil era um país curioso. O Deleuze dizendo que o melhor livro de Cosmologia que ele tinha visto foi feito por um Brasileiro, mas que não conseguiu ser editado no Brasil. É assim que as coisas são. Tentei editar o livro no Brasil, fui a duas editoras, fui à editora da Universidade de Brasília, que eu acho uma boa editora, e o mínimo que posso dizer é que fui tratado com uma desconsideração absoluta. Aproveitando uma temporada que passei no Instituto Poincaré, na França, meu livro foi examinado por um corpo de editores da Masson, que é uma editora tradicional francesa e imediatamente assinamos contrato. E eu fui obrigado a vender os direitos autorais para todas as línguas, inclusive para o português…

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