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A queda do céu

2015

Publicado originalmente em "A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami", notas e organização por Bruce Albert. Companhia das Letras, São Paulo.

Desenhos yanomamis: A noite

Capítulo 17: Falar aos brancos

Quando eu era mais jovem, costumava me perguntar: “Será que os brancos possuem palavras de verdade? Será que podem se tornar nossos amigos?” Desde então, viajei muito entre eles para defender a floresta e aprendi a conhecer um pouco o que eles chamam de política. Isso me fez ficar mais desconfiado! Essa política não passa de falas emaranhadas. São só as palavras retorcidas daqueles que querem nossa morte para se apossar de nossas terras. Em muitas ocasiões, as pessoas que as proferem tentaram me enganar dizendo: “Sejamos amigos! Siga o nosso caminho e nós lhe daremos dinheiro! Você terá uma casa e poderá viver na cidade, como nós!” Eu nunca lhes dei ouvidos. Não quero me perder entre os brancos. Meu espírito só fica mesmo tranquilo quando estou rodeado pela beleza da floresta, junto dos meus. Na cidade, fico sempre ansioso e impaciente. Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. Ficam tomados de vertigem, pois não param de devorar a carne de seus animais domésticos, que são os genros de Hayakoari, o ser anta que faz a gente virar outro. Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e enfumaçam o peito. É por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Não queremos mais ouvi-las. Para nós, política é outra coisa. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis. Por isso não conseguem entender nossas palavras.

[…]

Todas essas palavras se acumularam em mim desde que conheci os brancos. Hoje, contudo, não me contendo mais em guardá-las no fundo de meu peito, como fazia quando era mais jovem. Quero que sejam ouvidas em suas cidades, onde quer que isso seja possível. Então, talvez acabem dizendo a si mesmos: “É verdade! Nosso grandes homens não possuem sabedoria alguma! Não os deixemos devastar a floresta!”. Sei que seus chefes não aceitarão com facilidade o que digo, pois seu pensamento ficou cravado nos minérios e nas mercadorias por tempo demais. No entanto, os que nasceram depois deles e irão substituí-los talvez me compreendam um dia. Ouvirão minhas palavras ou verão o desenho das enquanto ainda forem jovens. Elas vão penetrar em suas mentes e eles assim terão muito mais amizade pela floresta. Eis por que eu quero falar aos brancos. Quando eu era criança, não pensava que aprenderia sua língua e muito menos ainda que poderia discursar entre eles! Não me perguntava como eram suas cidades. Tampouco me questionava quanto a seus pensamentos ou ao que poderiam dizer entre eles. Eu simplesmente os temia e, assim que se aproximavam de mim, fugia gritando! Gostava de estar na floresta, gostava de escutar as palavras dos meus e de conversar com meu padrasto. Ouvi-lo falar de caçadas e festas reahu me alegrava. Eu era feliz assim e se os brancos e suas epidemias não tivessem começado a devorar os meus parentes, talvez ainda o fosse. Uma vez adulto, a chegada repentina dos garimpeiros me fez refletir muito. Disse a mim mesmo: “Hou! Eu não sabia, mas os brancos sempre foram os mesmos, bem antes de eu nascer! Eles já queriam arrancar da floresta balata, castanhas-do-pará, cipós masi e peles de onça, do mesmo jeito que hoje querem lá achar ouro. É por causa dessa ganância que quase todos os nossos antigos morreram!” Hoje, não falo de tudo isso à toa. Jamais esqueci a tristeza e a raiva que senti diante da morte dos meus parentes quando era criança.

Capítulo 23: O espírito da floresta

O que eles chamam de natureza é, na nossa língua antiga, Urihi a, a terra-floresta, e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que nomeamos Urihinari, o espírito da floresta. É graças a ela que as árvores estão vivas. Assim, o que chamamos de espírito da floresta são as inumeráveis imagens das árvores, as das folhas que são seus cabelos e as dos cipós. São também as dos animais e dos peixes, das abelhas, dos jabutis, dos lagartos, das minhocas e até mesmo as dos grandes caracóis warama aka. A imagem do valor da fertilidade në roperi da floresta também é o que os brancos chamam de natureza. Foi criada com ela e lhe dá sua riqueza. De modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natureza, e não os humanos. Os espíritos sapo, os espíritos jacaré e os espíritos peixe são os donos dos rios, assim como os espíritos arara, papagaio, anta e veado e todos os outros espíritos animais são os donos da floresta. Assim é. Os xapiri estão constantemente circulando por toda a mata, sem sabermos. São eles que, vindo das montanhas, fazem surgir os ventos com suas corridas e brincadeiras, tanto a brisa do tempo seco, iproko, como o vento da época das cheias, yari. São os espíritos da chuva maari que descem do céu para refrescar a terra com suas águas e mandar embora o tempo de epidemia. Por isso, se os xapiri ficassem longe de nós, sem que os xamãs os fizessem dançar, a floresta ficaria quente demais para podermos continuar vivos nela por muito tempo. Seus seres maléficos në wari e os espíritos da epidemia xawarari viriam morar perto de nossas casas e não parariam mais de nos devorar.

[…]

Omama tem sido, desde o primeiro tempo, o centro das palavras que os brancos chamam de ecologia. É verdade! Muito antes de essas palavras existirem entre eles e de começarem a repeti-las tantas vezes, já estavam em nós, embora não as chamássemos do mesmo jeito. Eram, desde sempre, para os xamãs, palavras vindas dos espíritos, para defender a floresta. Se tivéssemos livros os brancos entenderiam o quanto são antigas entre nós! Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Omama deu a nossos ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada vez mais quente.

Nossos antepassados nunca tiveram a ideia de desmatar a floresta ou escavar a terra de modo desmedido. Só achavam que era bonita, e que devia permanecer assim para sempre. As palavras da ecologia, para eles, eram achar que Omama tinha criado a floresta para os humanos viverem nela sem maltratá-la. E só. Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos. Ouvimos sua voz desde sempre, pois é a dos xapiri, que descem de suas serras e morros. É por isso que quando essas novas palavras dos brancos chegaram até nós, nós as entendemos imediatamente. Expliquei-as aos meus parentes e eles pensaram: “Haixopë! Muito bem! Os brancos chamam essas coisas de ecologia! Nós falamos de urihi a, a terra-floresta, e também dos xapiri, pois sem eles, sem ecologia, a terra esquenta e permite que suas epidemias e seres maléficos se aproximem de nós!”.

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