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“Achar que a arte é o único lugar do sensível é uma balela” – Entrevista com Clarissa Diniz

março, 2016

Clarissa Diniz (Recife, 1985) é curadora e crítica de arte. Editora da Revista Tatuí, cura atualmente, junto com Paulo Herkenhoff, o Museu de Arte do Rio. Encontramos Clarissa no bar kalesa, nos arredores do MAR, na tarde do dia 14 de março de 2016. Essa entrevista foi realizada por Aline B., Jandir Jr. e Pollyana Quintella. Os desenhos foram feitos por Aline B., ao longo dessa conversa.

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POLLYANA: Bem, a gente quer entender um pouco quando você percebeu que queria trabalhar com crítica de arte.

CLARISSA: Eu sempre gostei de arte, desde a escola. Artes era minha matéria favorita. Meus professores de arte, de alguma maneira, sempre foram meus ídolos. Desde pequena eu queria ser professora de artes. Era uma coisa que eu amava. Era a melhor coisa que eu vivia na escola, e era tempo integral, então 90% do meu dia eu estava lá. Arte era o que eu achava possível. A partir da oitava série eu já tinha professores com uma melhor formação que davam conta de aprofundar as questões em termos de História da Arte, lá no colégio de aplicação da UFPE. Arte já não era uma questão de expressão livre, já existia todo um programa sério de disciplina. Com isso, e também junto com literatura e teatro, eu pude entender que existia uma dimensão social, política e mesmo teórica, que foi me interessando muito e que eu comecei a achar até mais legal do que a prática artística em si. No terceiro ano eu tive dúvidas do que fazer, porque todo mundo dizia que eu ia morrer de fome. Até cheguei a me inscrever no vestibular pra área das biológicas, pensando em fazer psicologia dos animais marinhos. Mas na hora de me inscrever mesmo eu não tive coragem e coloquei artes. Aí cheguei em casa e falei pra minha mãe, “você não sabe o que aconteceu”, e ela “já sei, se inscreveu em artes”. Era óbvio.

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POLLYANA: Você chegou a ter uma pesquisa como artista, não é?

CLARISSA: Não cheguei não. Na verdade como eu fiz faculdade de artes, licenciatura, aí eu tinha que fazer coisas, porque era aluna e porque vivia no universo de artistas. Mas eu nunca inscrevi trabalho em nada. Praticava artes como quem joga bola no final de semana. Por diversão. E pra ter a experiência sensível, a intimidade da coisa. Eu não queria ser artista, mas entender como se joga no mundo com a prática artística. Pelo contrário, desde que entrei na faculdade eu já escrevia. Organizei exposição no primeiro período. Meu investimento sempre foi mais teórico.

POLLYANA: Como eram essas primeiras exposições?

CLARISSA: Eram de meus amigos da faculdade. Logo na sequência eu entrei pro diretório acadêmico e organizei com amigos uma sequência de palestras com artistas locais. O projeto se chamava RG, registro geral. Chegamos a ter 95 palestras. E a partir daí minha rede local ampliou muito. Comecei a ter muito convívio com artistas. Então organizei uma exposição maior em São Paulo, em um salão alternativo, com 9 ou 12 artistas jovens de Pernambuco. Fiz algumas outras também ocupando espaços de galerias da universidade, de galerias alternativas na cidade. Logo na sequência passei a integrar um coletivo de uma galera um pouco mais velha e que tinha um espaço onde eu podia organizar exposições e escrever sobre artistas. Também logo comecei a editar a revista Tatuí, ainda na faculdade. No segundo período eu fui estagiar no centro de arte contemporânea da Universidade. Como eu adorava escrever e a diretora era mais artista, não gostava muito, a gente trocava. Eu escrevia os textos e achava o máximo. Mas eu não assinava não. Era ela que assinava. Foi lá que começamos as palestras. Eu era uma fedelha, tinha 17 anos. Então essa coisa de conhecer os artistas, ficar amiga deles, fazia com que eles me levassem nos lugares, nas vernissages. Eu fui meio adotada. Das 95 falas, 30 viraram uma publicação. Foi muito envolvimento. Quando entrei na faculdade percebi que o curso era super alienado diante do que acontecia na cidade. Eu achava surreal estudar Picasso mas não estudar um artista da minha cidade.

POLLYANA: Você acha que o modo como você concebia a curadoria, desse momento pra cá, mudou muito? Você já via a curadoria como um processo autoral?

CLARISSA: Eu acho que sim. No começo eu odiava curadoria. Antes de fazer, eu odiava. Era um lugar político. Eu achava que era um papel que exercia um poder político muito grande, pela sua dimensão institucional, pela sua dimensão com o estado. Eu achava que era um exercício muito determinante do olhar do outro. Escolher o que as pessoas vão ver, atuar no campo da visibilidade, tinha um peso político que me desconfortava. Então eu dizia que queria ser crítica de arte. Claro que tem uma ingenuidade em achar que escrever é um processo de menor poder político. Mas depois eu entendi que a curadoria podia ser um processo de interlocução, que se dá muito, inclusive, para além da exposição. A exposição acontece num processo de engajamento com uma pesquisa. O foco é a interlocução, não necessariamente a exposição. Eu comecei a fazer curadoria assim. Não porque eu queria fazer uma exposição, mas porque eu estava desenvolvendo uma pesquisa ou conversa com alguém e num determinado momento fazia sentido que aquilo viesse a público no formato de exposição. Pra mim era uma extensão da crítica. Então o primeiro momento mais institucional foi em 2007, no Museu Murillo La Greca, curei uma exposição chamada “Encarar-se”, de Rodolfo Mesquita dos anos 1970 e Fernando Perez, um artista jovem de Pernambuco. Eu achava que a obra deles conversava em períodos históricos distintos sem que eles fossem interlocutores, apesar de Fernando conhecer a obra de Rodolfo. E eu tinha interlocução com os dois em separado. E achava que como curadora eu devia aproximar os dois. A exposição estabelecia esse diálogo. Então às vezes a exposição é a oportunidade para a interlocução, e não o contrário. Nesse caso tem que entender a que ela está respondendo. Se não responde a uma interlocução que já existe, responde a outras coisas, inquietações.

JANDIR: Você contrapõe a curadoria em espaços institucionais com a escrita pra falar desse processo de visibilidade. Mas e em relação a espaços independentes?

CLARISSA: Também. Claro que é uma escala muito menor. Eu acho que a escrita e os espaços independentes também escolhem o que vai ser visto, claro. O fato das instituições no Brasil serem poucas dá muita importância a espaços independentes e galerias, esses outros espaços onde a coisa começa. Se você depender só do museu nada acontece. Esse poder e essa responsabilidade são enormes. Se você não encontra espaço em lugares independentes, dificilmente vai encontrar espaço em outras instituições. É uma responsabilidade inclusive mais drástica. Isso está em todos os lugares. Mas é claro que quanto maior a visibilidade, maior a abrangência e o alcance. Sobretudo na publicação, na quantidade de público, na capacidade daquilo se desdobrar em salas de aula, com famílias. É outro alcance. Tem um texto na Tatuí 7, de um artista chamado Rafael Campos Rocha, de São Paulo, que fundou o ateliê 397, onde surgiu a Renata Lucas, por exemplo. Esse texto fala sobre o discurso dos artistas que hoje tem visibilidade e que nutrem uma certa nostalgia de como seus trabalhos eram melhores ou mais interessantes quando faziam numa escala menor, apenas pra seu grupo de amigos. O Rafael rebate essa fetichização alegando que é importante parar de produzir para os amigos, se achando um gênio ou que está fazendo a revolução. Ele critica esse elogio da margem, porque às vezes é uma postura também muito confortável. Tem uma acidez que é até um pouco reducionista, mas acho que cumpre seu papel. Tinha até uma espécie de crítica à revista também. Era como dizer “vamos acreditar sim nos espaços alternativos, mas também ficar fazendo revista pra 50 pessoas lerem não vai mudar nada”. Tudo isso pra dizer que não basta nem o MAR, nem o ateliê 397.

JANDIR: Mas é como assumir dois pesos também. Quando você assume uma tarefa política de maior amplitude, ir além dos 50 amigos, você precisa entrar em contato com instâncias que muitas vezes moldam o seu trabalho, fazem incômodos aparecerem.

CLARISSA: Pois é.

POLLYANA: E você acha que é possível continuar acompanhando o processo dos artistas no ateliê mesmo quando você se compromete com uma instituição de grande porte, como o MAR, que te exige muita demanda de trabalho?

CLARISSA: É muito difícil. Eu acho que dá, mas não estou conseguindo. Nesse aspecto o MAR não é um exemplo de instituição. O modo como o MAR ainda centraliza a curadoria impede que exista um tempo produtivo para esse acompanhamento, essa deriva dos sentidos. O MAR não é uma instituição desse modelo. É um lugar de megaexposições. É tudo muito grande. O MAR é um exemplo pra várias coisas, mas nesse caso não. Não existe uma política de acompanhamento das melhores. Não que não aconteça, acontece. Mas menos do que eu gostaria. É irregular. Se você baixa as expectativas e condensa as ações, ganha em qualidade, ganha em tempo, em caráter colaborativo…

POLLYANA: E o contraponto disso com seu trabalho na revista Tatuí? Era um trabalho menor, de edição. Fico pensando na edição também como um exercício de curadoria. Foi uma escola pra aprender tudo isso? Faz sentido separar edição de curadoria?

CLARISSA: Não dá pra separar, mas tem diferenças. A edição é muito legal pela agilidade de resposta que você tem na atividade de levantar hipóteses. É mais fácil levantar uma hipótese numa revista do que numa exposição. Na exposição é preciso mobilizar muitas pessoas. Na revista não. Assim você pula etapas e acelera o pensamento e a reflexão. Consegue ainda coletivizar mais. Foi um momento muito profícuo para pensar. Pensar rede, interlocução, editar junto, conversar, trocar ideia. Algumas edições eram residências, então era mesmo escrever junto. Eu quero continuar fazendo revista. É uma coisa deliciosa de fazer, e de baixo custo. Você realmente encontra respostas. E escrever é massa, então sempre achei uma delícia. E aprendi muito. Sobre edição, sobre design, que eu era uma leiga. Ainda sou, mas melhorei bastante. Aprendi coisas no mundo da edição que fazem toda diferença na prática curatorial. A Tatuí foi crucial pra eu fazer catálogos, publicações. Uma boa curadoria chega até o fim do projeto editorial. É o catálogo que fica, o grande documento onde as coisas vão aparecer. Por exemplo, na exposição “Do Valongo à Favela”, acho o catálogo melhor que a exposição. Já em “Pernambuco Experimental”, eu acho a exposição melhor.

POLLYANA: Nessa concepção da curadoria como invenção, criação, levantamento de hipóteses e teses, o curador pode ser uma espécie de artista?

CLARISSA: Eu estou mais interessada em tirar os artistas do lugar de artista do que colocar o curador no lugar de artista. É mais útil pro mundo do que ter mais alguém dizendo que é artista por aí. É mais estratégico colocar todos os artistas no lugar do curador. A dimensão sensível da criação existe em qualquer lugar do mundo e da vida. Não é restrito à arte e muito menos à curadoria. Isso está espalhado por aí. Um mal que a arte faz é monopolizar o sensível. Achar que a arte é o único lugar do sensível é uma grande balela. É um desserviço que o mundo da arte faz. Isso acontece muito e cada vez mais. Hoje as pessoas acham que tem que ir na Bienal pra ter uma experiência artística. Jogar a curadoria nesse lugar é piorar o erro. Se isso já é um problema que a arte moderna nos trouxe, ou seja, se a autonomia da arte degringola no risco de monopólio e hegemonia do sensível, jogar a curadoria aí é insistir no equivoco. Sou contra. Entendo quando as pessoas falam, mas acho que é uma ótica pobre da questão. É mais instigante entender que não só a arte ocupa o lugar de criação no mundo e nem só a curadoria ocupa o lugar do pensamento sobre a criação. É mais pluralizar a curadoria. Tem gente que acha horrível falar de curadoria de gastronomia. Eu acho sensacional, porque são práticas curatoriais que acontecem para além do mundo da arte e que tem que ser valorizadas como tal. Isso contribui de volta para a arte. Para além do corporativismo institucional da arte, que quer salvaguardar empregos para si, é muito bom que a gente discuta estética a partir do ponto de vista da culinária, do cabeleireiro. Ampliar atribuições é sempre melhor do que reduzi-las. Nesse sentido, é todo mundo curador e todo mundo artista sem precisar que isso seja uma questão. Se você afirma esse lugar, você passa a excluir o outro.

JANDIR: É como quando o cabeleireiro diz que domina a arte. A arte de fazer cabelos.

CLARISSA: Acho maravilhoso. Eu acho que é isso mesmo gente. Arte não é negócio de artista não.

JANDIR: Me parece que experimentar o espaço expositivo muitas vezes se relaciona com a pesquisa da forma na arte. Como acontecem essas soluções?

CLARISSA: Na minha experiência pensar o espaço é um trabalho colaborativo. Seja com o arquiteto ou com os artistas. Agora, por exemplo, estou curando a exposição do Pablo Lobato que vai inaugurar no MAR. A exposição foi pensada a partir do espaço, e não o contrário. Vamos cortar as paredes do museu e esses cortes orientam a escolha das obras e como elas se apresentam. O espaço é a discussão. Se fosse em outro lugar, seria totalmente diferente. Nesse processo, eu penso o espaço a partir da perspectiva de Pablo e sua obra. Nesse caso eu me permito contaminar pela obra dele, me entregar ao trabalho. Como temos coisas pouco ordinárias na expografia, alguém vai dizer “expografia é um gesto artístico da curadoria” e eu vou dizer “Não é”. Na verdade, é o contrário. Quando um bom trabalho curatorial acontece, isso é só mais uma interface performativa das intenções daquele artista. Dizer que o curador bebe da arte pra pensar estratégias de expografia é certo. É a oportunidade de ver as coisas a partir de uma perspectiva de um artista, de uma época ou qualquer outra coisa. Em alguns casos é mais complexo. Dependendo de quem está pensando arquitetura com você isso até pode virar um território de disputa, quando, por exemplo, arquitetos brigam com curadores pra disputar quem realmente está pensando a dimensão do espaço. Ou quando o curador instrumentaliza o arquiteto achando que é ele que define tudo e o arquiteto faz o projeto técnico. Nem sempre eu acho que chego na minha potência máxima. Tem exposições minhas que eu penso que estão ok, apenas. Tem outras que acho que não, que a expografia dá conta. Na exposição “Do Valongo à Favela” é tudo irregular. A primeira sala é diferente da segunda. Eu acho a segunda infinitamente mais bem resolvida que a primeira.

POLLYANA: Eu já vi algumas pessoas se referirem à sua curadoria e à do Paulo Herkenhoff como uma curadoria de excesso, uma curadoria com muitos trabalhos. A experiência do espectador na exposição é lidar com trabalhos do chão ao teto, sem uma condução específica do olhar. É um espaço expositivo menos cubo branco, menos purista.

CLARISSA: O excesso é mais do Paulo do que meu. Acho que isso vem mais dele. Já fiz exposições em que havia muitas obras, mas não é uma regra. Quando havia muitas obras era porque o projeto pedia. Já no caso de Paulo, quase tudo o que ele faz tem muita obra. Às vezes eu sou cumplice dele e também quero isso. Mas como modelo de prática, é mais dele. Quando as pessoas dizem isso, tem pontos ótimos, mas tem pontos problemáticos também.

POLLYANA: Às vezes sinto nessa crítica o desejo de uma limpeza visual que conduza confortavelmente o espectador. Um anseio quase moderno. Não sei se isso dá conta de algumas pesquisas curatoriais.

CLARISSA: Demais. Acho que tem uma preguiça e um hábito do cubo branco. Quando você chega num lugar que te tira desse conforto você fica um pouco confuso. Tem gente que acha de cara que é uma bagunça e que por isso não é legítimo. Não se dá o direito de pensar o que a exposição promove.

POLLYANA: Ou de estabelecer seus próprios percursos. Porque você acaba se vendo nesse lugar de construir os caminhos do seu olhar. O que acontece mesmo em exposições supostamente mais organizadas.

CLARISSA: O que é muito importante na trajetória de Paulo é a ideia de densidade, imantação. Imantar o espaço não necessariamente demanda quantidade, você pode imantar um espaço com um único fio. Mas o modo como Paulo explora o conceito de imantação em sua curadoria, junto com a ideia de densidade histórica e política, muitas vezes pede a quantidade, a experiência do excesso. Pra ele faz todo o sentido. Se aproximar do pensamento dele pede que a gente lide com isso, não tem como fugir do excesso. Ou você encara ou não vai entender o que ele está trazendo como proposta. Nesse sentido o MAR é promíscuo. É a confusão, a contaminação entre as obras. Uma interfere na outra pro bem e pro mal. Tem horas que é bem resolvido e tem horas que não. Tem que ter cuidado.

JANDIR: “Pernambuco Experimental”, por exemplo, foi sua curadoria.

CLARISSA: Sim, foi. Tinha muitas obras, mas era mais vazia.

POLLYANA: Aproveitando “Pernambuco Experimental”, esse exercício de reescrita da História da Arte Brasileira é central na sua curadoria né?

CLARISSA: Muito. Isso também vem com a trajetória de Paulo, mas desde que eu comecei sempre estive engajada com isso. Desde os tempos da faculdade, lá com o projeto de palestras com os artistas locais, já era o sinal de que eu estava mais interessada em estudar os meus vizinhos do que Picasso. Quando comecei a trabalhar com o Paulo foi o encontro de um mesmo desejo. Agora estamos com um grande foco em Centro-Oeste, Amazônia e Nordeste, agora chegando mais na Bahia e no Ceará. A ideia é fazer uma exposição bacana com os artistas da Bahia.

JANDIR: Em relação a esse projeto RG, de palestras com artistas na universidade, queria saber se você tinha a intenção de com isso criar ou mudar algum tipo de mentalidade naquele ambiente.

CLARISSA: Eu estava mais interessada em conhecer as coisas do que mudar a mentalidade de alguém. Era mais formar a minha própria mentalidade. Claro que eu tinha meus incômodos. Mas eu também encontrava ali professores que me inspiravam e me instigavam. Eu fazia alianças com elas. Tem um artista, professor lá da UFPE, chamado Marcelo Coutinho. Ele é maravilhoso, me abriu a mente de um jeito que até hoje é uma referência pra mim. E está lá. Eu nunca tive muito esse devir “programa político”. Não eu que eu não tenha desejo. Mas meu campo sempre foi mais a pesquisa e a crítica do que o desejo de fazer manifestos. Porque tem gente que tem muito essa energia, essa coisa meio taurina.

POLLYANA: Pois é, mas você tem aquele texto criticando o Opavivará, o “Partilhas da crise: ideologias e idealismos” que ganhou uma certa ressonância. É um texto em que você se posiciona.

CLARISSA: Mas eu não queria mudar a mentalidade deles não.

POLLYANA: Sim, mas acho que você tem uma crítica que se posiciona. Como na Tatuí 12, em que a proposta editorial é que os convidados comentem textos críticos, numa espécie de confronto. Como você vê esse espaço da crítica? Você acha que a crítica precisa se posicionar mais no sentido de levantar abertamente esses incômodos?

CLARISSA: Eu acho que sim. Tem que assumir mais riscos, se colocar mais. Naquela Tatuí também existia o desejo de mapear alguns diálogos que existem, mas não são nominados. Tem um egoísmo no mundo da arte, não só no mundo da arte, em todo o mundo, que é essa individualidade das ações. As pessoas dizem “eu tenho o meu projeto” ou “eu sou um curador que trabalha com tais e tais questões” ou “eu sou uma artista que trabalha com a questão do corpo”. Nenhum de nós está no mundo desse jeito. Está todo mundo atravessado por tudo o tempo inteiro. Se você olha pra história da curadoria e da crítica no Brasil, sobretudo depois que os críticos modernos pararam de se enfrentar, você não vê mais essas interlocuções aparecerem publicamente. Como, por exemplo, escrever em resposta a algo que alguém fez. Você vê matéria de jornal, coluna, mas não vê mais aquela troca de cartas, aquela coisa. Eu acho que isso é um sintoma de um mundo que fica confortável nesse individualismo. Então aquela Tatuí também tinha a intenção de mostrar que as pessoas não se formam sozinhas. Eu penso com aqueles que diferem de mim. No caso do Opavivará, com quem eu tenho várias questões, mas com quem eu já trabalhei também, me faz pensar às vezes mais coisas do que artistas que eu julgo sensacionais. Um posicionamento, seja de embate ou não, é parte de um movimento de abertura e conversa com o outro. Sem a conversa com o outro você não se posiciona. E acho que as pessoas às vezes tem esse jeito vaidoso, individualista, de seguir seu caminho sem alimentar a esfera pública do debate. Não só na arte. Então tinha isso naquele projeto.

POLLYANA: E em geral as pessoas acabaram mais endossando os textos, do que gerando algum tipo de confronto.

CLARISSA: Tem isso também. O convite era “escolha uma referência que te mobilizou nos últimos dez anos para a qual você gostaria de responder”. Então é isso que você disse, quase ninguém estabeleceu uma situação de antagonismo. Era mais ir na onda. É doido porque então o meu texto virou referência da revista. Isso é doido porque mostra que as pessoas querem ler isso. Apesar do individualismo, no fundo as pessoas estão interessadas no conflito. Elas só não querem entrar ou participar dele. Mas na cabeça delas esses confrontos existem. Então, como você disse, é preciso se posicionar mais.

POLLYANA: Fico pensando a questão do fechamento da casa Daros. A gente não gerou um debate público sobre esse caso, que foi um caso absolutamente inexplicado. Tivemos uma matéria ou outra nos jornais, acho que da Daniela Labra para O Globo, mas não houve uma ressonância. Não sei se isso é falta de espaço nos veículos.

CLARISSA: Espaço tem. Espaço se arruma, se constrói. Agora com o Parque Lage as pessoas estão muito mais mobilizadas. O fato das pessoas não terem se importado muito com a Daros também mostra que aquilo não fazia ainda parte da vida social da cidade. Talvez uma evidência da dificuldade da Daros se inserir. Claro, mal abriu, fechou. Realmente não houve tempo. Mas agora com o Parque Lage tem vários abaixo-assinados, várias matérias, muito mais. Existe a capacidade de se mobilizar, por mais que às vezes seja na base do sensacionalismo, da polêmica. Mesmo quanto às Olimpíadas, quantos artistas estão pensando essa questão mesmo? Eu achei que esse ano ia aparecer um monte de trabalhos pensando essas questões. Onde estão? Os artistas estão ocupados com outras coisas.

POLLYANA: O Igor Vidor está com essa pesquisa agora.

CLARISSA: Ele é um dos poucos que tenho visto. Mas também não acho isso de todo ruim. Por um momento, sobretudo nos anos 1990 e 2000, a pauta social virou a pauta da arte. Era difícil ver artistas pensando cor, forma. Ou então desenvolvendo um trabalho que não era tão devedor da pauta social.

POLLYANA: Todo mundo virou sociólogo.

CLARISSA: Exatamente. Os trabalhos funcionavam como comunicação. Muito chato também. Então acho que pode ser um sinal de que a geração que está vindo vai pensar a arte de outra maneira. Acho que tem uma ressaca das “questões”. Todo mundo tem uma questão. É muito chato isso. Agora tudo é perguntar pro artista “qual a sua questão?”. Todo mundo faz essa pergunta. Minha formação foi isso. Ia visitar ateliê e as pessoas perguntavam “você trabalha com qual questão?”. Era uma forma de abrir a conversa. O pior é que os artistas passaram a incorporar isso. Virou um cacoete sério. Talvez seja por isso que não temos muito trabalhos agora sobre as Olimpíadas, pode ser uma ressaca.

JANDIR: Acho que o uso da pauta social pelos artistas também vem da possibilidade de conseguir espaços nas instituições, nos editais. Fica muito mais tranquilo escrever uma justificativa.

CLARISSA: Está tudo ligado mesmo. Se os curadores não conseguem visitar os ateliês pra acompanhar os processos, eles ficam devedores da interpretação que o artista tem. Aquilo que o artista consegue comunicar do seu trabalho. A “questão” virou uma forma de comunicação possível.

POLLYANA: É uma forma de acelerar os processos, me parece. Você pula a etapa de olhar para o próprio trabalho para ouvir o discurso do artista sobre o trabalho.

CLARISSA: Sim. Eu já tive experiências assim. Vendo portfólios para seleção, tinha aquele artista que você acredita que é incrível, mas que é difícil de caber no discurso da “questão”, e aí é muito difícil convencer os colegas que estão selecionando com você de que o trabalho é bom, porque opera num sensível que não é devedor no discurso. E que também não se comporta bem naquele formato de portfólio, na impressão do papel, naquele código. E então já tive situações que eu não consegui defender um dos artistas que considero um dos mais incríveis que já vi na minha vida. Mas isso se aprende também. Eu tinha vinte anos. Hoje tenho trinta. Hoje talvez eu conseguisse. Você vai adquirindo capacidade linguística. E isso é um lugar forte e útil da curadoria. Ter essa interlocução é um aliado importantíssimo pra conseguir dar espaço pra esse tipo de produção nas exposições. Sem a mediação, só o artista e o mundo, fica mais difícil.

JANDIR: Mas acompanhar esse processo no ateliê é difícil.

CLARISSA: É difícil, mas não é impossível não. O MAR não é brincadeira, é muito trabalho. Se contar ninguém acredita. Não existe parâmetro.

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POLLYANA: A gente queria que você falasse das suas referências. Críticos, curadores, artistas, ou mesmo referências mais teóricas. Alguma leitura determinante na sua trajetória…

CLARISSA: Alguns professores foram referências. Marcelo Coutinho, por exemplo. Referência pra pensar linguagem, pra pensar o lugar da arte e sua contaminação com o lugar da ciência. O entendimento de como a arte opera no mundo, eu devo a ele. O modo como ele articulou esse pensamento e fez isso ser palpável na minha vida foi uma grande referência. Li Levi-Strauss, li Edgar Morin, gente fora da arte que foi crucial. Levi-Strauss, por exemplo, fiquei em estado de choque quando li Tristes Trópicos. Ele escrevia uma frase em um parágrafo. Vinte linhas só com vírgula e travessão. Eu fiquei chocada. Foi uma grande referência.

POLLYANA: E você cita bastante o Eduardo Viveiros de Castro também.

CLARISSA: Aí sim. Então seguindo no tempo, depois Paulo Herkenhoff foi uma grande referência com a exposição que fez em Recife, “Pernambuco Moderno”. Nem tanto pela exposição, mas pelo texto. Era um texto de pesquisa, coisa que eu já fazia. Eu tranquei a faculdade por um ano pra escrever um livro e pesquisa em acervo. Tenho certeza que foi muito mais importante que a faculdade. Então nesse momento veio o Paulo com essa exposição. Ele dizia em seu texto que o conhecimento e inserção da arte pernambucana era tarefa do historiador pernambucano. Aquilo pra mim fazia todo sentido. São essas coisas que aparecem no momento certo. Afirmou uma porta que já estava aberta.

POLLYANA: E o Paulo tem aquela escrita poética, apaixonada, que contamina a gente.

CLARISSA: É totalmente passional. Sobre aquilo que você falou de tomar posição. O Paulo é um crítico dos que mais tomam posição. Ele compra as brigas. Eu digo “Paulo, não gasta energia com isso”. Mas ele briga. Então também é uma referencia incrível, e a grande energia que tem pra pensar a história, revisar a historiografia. Ele é um grande arquivista. Documenta tudo, tem uma memória do cão. A importância política da curadoria eu aprendi com ele. Venho apurando com ele. Frederico Morais em determinado momento também se tornou uma referência pela relação entre crítica e criação. E tenho muitos artistas que admiro, próximos a mim, referências em vários aspectos. O próprio Pablo Lobato, Deyson Gilbert, Yuri Firmeza. Da minha geração tem os críticos que nem são tão próximos, mas que admiro muito como o Sérgio Martins. E o teórico é o Eduardo Viveiros de Castro. Fui atrás dele, estudar com ele. Depois ele brigou comigo, me esculachou. Mas eu nunca fui muito de idolatrar pessoas. O que faço é admirar aspectos específicos. Me dediquei por muito tempo a pesquisar a obra do Montez Magno, por exemplo. Me toca profundamente ver que ele, com oitenta e poucos anos, cria diariamente. E são coisas bobas. Eu chego na casa dele e ele vai me mostrando o que fez. Na minha casa tem coisas que as pessoas não acreditam, um pedaço de vassoura com uma caixa de isopor. As pessoas perguntam o que é e eu digo que é uma obra. Ninguém entende nada. Longe de achar que aquilo é um ready made do século XXI por isso. O que é incrível daquilo é a experiência de cultivar o lado sensível com qualquer coisa, o tempo inteiro. Isso pra mim é uma grande referência. Eu fico emocionada. Outro dia cheguei na casa dele e tinha um pau de ferro cheio de piranhas coloridas de cabelo, aquelas bem horrorosas. Ele me perguntou se eu gostei e aí eu começo a tirar onda, fico conceitualizando o trabalho. Ele disse “Eu vejo todas as mulheres usando isso. Resolvi experimentar os prendedores”. É lindo ver isso. Ver a piranha no cabelo de todas as mulheres com quem você fala e pensar que é homem, mas que ainda assim vai lidar com aquilo. E depois as piranhas vão mudando de lugar. A questão não é a obra. Vários artistas são assim. Já tem outros que não são nada assim, que são pragmáticos e que também são incríveis e inspiradores. Tenho mais referências de artistas do que críticos e curadores. Mas tem o Oswald de Andrade que é uma referência grande. O Gilberto Freyre é uma referência na escrita.

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