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Santiago: dois filmes em um

setembro, 2014

Jairo Ferreira, em outro contexto (Cinema de Invenção), comenta, defendendo o cinema nacional, que se não é possível fazer filme-de-cinema, faz-se filme-sobre-cinema. João Moreira Salles parece que percorreu o caminho contrário. Com todos os recursos para fazer um filme-de-cinema, Salles exagerou e se perdendo, acabou encontrando um filme-sobre-cinema.

Há dois filmes em “Santiago”1, contudo, existe um filme só. Mas é a partir dele que há outro: o possível filme de 92, com quem o filme-de-fato dialoga, e que hoje existe na cabeça de cada espectador. E foi pela cabeça de Moreira Salles que ele não existiu. Não se tratava de filme-de-cinema e nem sobre-cinema, deveria ser um filme sobre uma pessoa. Acabou se tornando sobre duas: a relação

Em 1992 João decidiu fazer um filme sobre o mordomo de sua família, que viveu com eles 30 anos na mansão da Gávea. Santiago foi uma pessoa muito peculiar que com certeza merecia ser conhecida, e João já o conhecia muito bem, por isso sabia tudo que queria mostrar. Filmou com “seu personagem” durante 5 dias e também outras imagens planejadas para o filme. Após as filmagens, diante do material bruto, não conseguiu montar. Treze anos depois, o filme surge novamente. Foi necessário bastante tempo para que João entendesse o que aconteceu. E um filme que antes já poderia ser considerado pessoal, agora se torna íntimo.

“Santiago (uma reflexão sobre o material bruto)” é pensamento. O filme se pensa. João constrói o filme através de sua reflexão conseguindo unir à isso sua intenção original, que era fazer um documentário sobre Santiago. Mas a verdade é que desde o início, o filme nunca foi apenas sobre ele. Há também uma questão afetiva da família Salles e a vontade de querer expressá-la. Por isso, fazer um filme sobre Santiago foi também uma oportunidade de voltar a casa da infância. Os três primeiros planos do filme (que João nos conta que seriam o início do filme de 92), já nos mostra essa e outra característica que percorre o filme todo: o quadro.

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Vendo essas primeiras imagens e ouvindo Salles dizer suas intenções, ele se revela, e no decorrer do filme se expõe cada vez mais. Cada plano tem uma composição cuidadosa, na sempre esplêndida fotografia de Walter Carvalho, ABC. Os planos iniciais, muito bonitos, com um movimento bem executado, a fotografia na moldura, o fundo desfocado: seria certamente um belo início de um filme de autor. O travelling na galeria lembra O Ano Passado em Marienbad. Depois, João ainda nos conta mais uma ideia, “imagens-bonitas”, para o primeiro filme: as cenas em estúdio, bem controladas, luz bem desenhada, técnica impecável (detalhe para a câmera no plano do boxe). Ele chega até a mostrar um pouco como essas imagens estariam no filme de 92. Seria mais um desastre, mais um afastamento do personagem. Essas imagens nada tinham a ver com a memória e nem com o presente de Santiago.

O filme segue com enquadramentos distantes de Santiago, e além disso (que é uma percepção dolorosa do cineasta), sempre apresenta diversos objetos na frente do personagem: na cozinha, a máquina de escrever, a porta, posteriormente, outra maçaneta; no quarto, um relógio (por que?); em outras cenas, cortinas, paredes, móveis, uma pia. Santiago não está apenas distante, mas todos esses outros elementos que estão à sua frente, demonstram que ele não era a principal preocupação do diretor. Na metade do filme João volta a refletir sobre a composição dos planos, mostra como eles podiam ser controlados, e dessa vez em uma frase, se entrega: “hoje, treze anos depois, é difícil saber até aonde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita”.

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Tudo evidencia essa preocupação que dominava a cabeça do diretor e que o fez esquecer da pessoa-Santiago, que estava ali. Absorto em suas preocupações estéticas, o cineasta (ou documentarista, como ele prefere se chamar) parece ter esquecido que o filme era sobre uma pessoa e era nela que ele devia se concentrar. Isso chega ao absurdo na cena em que João pede para que Santiago conte sobre as flores de pé e olhando para a parede. Mais uma vez Salles se expõe, mas talvez só restasse mesmo se confessar, diante daquela imagem inacreditável.

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Não só Santiago estava ligado a suas lembranças de infância e por isso o filme sempre seria sobre os dois, mas diante desses planos, ele acaba se tornando mais sobre Salles, pois tudo que foi filmado mostra mais do diretor do que de seu personagem. A cena mais íntima de Santiago e a única em que ele pôde realmente se expressar, foi a dança das mãos. E foram nesses menos de quatro minutos, o único momento em que ele esteve à vontade. E, ao contrário do que disse João, esse é o único close de Santiago.

Pensando em tudo isso, é impossível não lembrar de Coutinho (que consta nos agradecimentos: o que será que ele teria opinado?) que com enquadramentos simples, constrói toda a força de seus filmes na relação que consegue estabelecer com seus personagens. E já nem me parece adequado continuar chamando-os de personagens. O são enquanto parte do filme, mas na filmagem são pessoas, seres humanos. E é dessa relação humana, pessoal, próxima, afetiva, que qualquer filme deve surgir, ainda mais documentários assim. Coutinho está ali, presente, calmo, conversa com a pessoa a sua frente, a câmera registra aquele momento. É algo que se cria na vida real e a câmera captura.

“Santiago” nos revela o desastre que o filme de 92 poderia ser. Mas na verdade, se ele realmente tivesse existido (e o fato é que não existiu – não existe) ele não seria um desastre. É a ideia dele que é um desastre hoje, pois o imaginamos a partir do filme que existe (e existe um filme apenas). E talvez esse filme nunca deveria ter existido, nem sido filmado – mas foi, e diante disso, foi de muita coragem João ter se exposto e realizado o filme afinal.

A “reflexão sobre o material bruto”, não é mais técnica, é a reflexão sobre a vida real: sobre a (não)relação que ele estabeleceu com Santiago. O filme existiu, pois, diferente da época da filmagem, com o tempo ele passou a trazer questões relacionadas a vida de Salles, enquanto antes era mais intelectual. Dessa forma, não foi só uma reflexão pessoal (que também serve para outros), mas também uma reflexão sobre o cinema, essa arte que pode se esconder atrás de técnicas e imagens-bonitas, mas que a verdadeira força continua na vida presente nelas.

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Chegamos a confusão dos Santiagos (há o mordomo, a pessoa, o personagem): os dois filmes estão em um e ele nunca terá essa força nas imagens (talvez apenas na dança das mãos), mas encontrou sua força na reflexão. João cita Werner Herzog para encontrar as únicas partes não planejadas em seu filme: são os restos, aquilo que vem antes e depois da ação. Mas em “Santiago” esses momentos são os que justamente mostram a preocupação com o controle.

Essas partes não eram para aparecer, e isso deixa evidente como João se expõe (é corajoso). Deve ser difícil para ele ouvir suas ordens. Com pressa, ele utiliza falas diretas, cortando qualquer respiro de espontaneidade, de desvio do que (e como) ele queria que Santiago falasse. João não deu espaço para nada que não tenha pensado. Quis controlar tudo. E o resultado é que o que “sobra”, não é a beleza fortuita que dizia Herzog, mas uma constatação dos erros.

E essa constatação nos proporciona duas falas impactantes no final. Primeiro aquilo que João demorou anos para perceber: que enquanto imaginava naqueles dias ser um documentarista (cineasta) e Santiago o seu personagem (o que, como disse, já consideraria equivocado), na verdade ele “nunca deixou de ser o filho do dono da casa e ele o mordomo”. (E essa é uma constatação que tem muito a ver com a sociedade brasileira).

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Mas a imagem mais forte (talvez a única imagem forte demais) e que mais dói, é a tela preta, quando, assim como “no primeiro plano do filme”2, João não deixa Santiago fazer o depoimento que gostaria, e dessa vez pontua: “quando Santiago tentou me falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmera”. E essa frase (que me faz sentir uma dor impressionante), é dita na voz do narrador, que interpreta durante todo o filme seu irmão. É dele a responsabilidade de dizer, numa voz grave e calma, que se contrapõe a que ouvimos entre os planos, as falas de João.

A partir da ideia de Herzog, Salles percebeu que em seu filme “os restos” foram reveladores pelo que se diz ao personagem antes de toda ação, e esse seria o segredo do filme. E realmente é. Isso é o que faz o filme não ser o desastre de 92 (ao mesmo tempo que faz o imaginário filme de 92 ser um desastre). E é isso que também entrega João. Por isso o filme é bom e ruim ao mesmo tempo (dois em um). E o cineasta é duplamente culpado. Culpado pelo mérito e pelo vacilo.

E por último, a revelação de sua forte influência – Yasujiro Ozu – fica como uma des-culpa. Mas no fundo, o filme todo é.

 

 


Notas:

1.  “Santiago” entre aspas trata-se do filme. Santigo sem aspas, do personagem.

2. Quando João diz aos 4 minutos: “esse é o primeiro plano do filme”, e, inacreditavelmente, ao invés de deixar Santiago fazer seu depoimento inicial (não!), mesmo que depois não fossem usa-lo, eles pedem que ele comece logo apresentando a cozinha.

Nota 3: É interessante como meu texto não fala de Santiago. Mas esse é o filme, apesar de João ter conseguido mostrar seu personagem (que inclusive teríamos muita coisa pra falar) o filme nunca foi e não é sobre ele.

 

 

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