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Por uma mídia menor

1986

janeiro, 2017

Richard Giblett – Rizoma de Micélio. Grafite sobre papel, 2008

Seria importante tentar ampliar a noção habitual de mídia. A noção de mídia, enquanto exposição de produtos, como numa espécie de supermercado, é algo que determina não só as formas de consumo da literatura, da arte, etc., mas também modeliza as formas de produção artística e literária.

Consideremos Kafka, por exemplo. É muito claro que Kafka nunca terminou uma obra, a não ser talvez, no máximo, uns dois contos. Ele tinha um certo ideal de forma literária, aliás bastante clássico, mas quando planejava um romance, era em Dickens e Kleist que pensava. Até seus romances mais trabalhados ficaram inacabados. É notável o fato de que, quando se considera a obra de Kafka em seu conjunto, vê-se até que ponto os mesmos elementos de criação permeiam tanto seus esboços de romance e de contos, quanto seu diário e sua correspondência. E o todo está sempre marcado por uma espécie de vontade latente de destruição. O que se complementa pelo fato de que, efetivamente, ele nunca terminou nada.

Algumas semanas antes da sua morte, ele continuava a recomendar às pessoas próximas, àquelas que conheciam seus manuscritos, que destruíssem tudo, mesmo sabendo que, provavelmente, elas não o fariam. Pode-se imaginar que, com esse desejo de não acabamento de expressão, o que ele visava eram as formas identificáveis de criação. Há uma frase no diário, pelo que me lembro, que expressa uma espécie de iluminação presente em toda a criação de Kafka, algo assim: “a gente pode escrever tudo”. E acho que o que interessava realmente a Kafka era isto: a gente pode sempre escrever tudo o que acontece em nossa existência. E quando ele conseguia demonstrar para si próprio que poderia captar, em um enunciado, algo que de início não lhe parecia semiotizável, nesse momento a obra caía, literalmente, de suas mãos. Ele já tinha atingido seu objetivo, e a ideia de ir além disso, de acabar um romance ou um conto, não lhe interessava absolutamente. Isso é um paradoxo do ponto de vista do mercado da mídia num sentido amplo.

É esse tipo de obra fragmentária (e quando se pensa em fragmento, imediatamente pensa-se em Nietzsche) que eu e Deleuze chamamos de “menor”. É exatamente esse tipo de obra que rompe com as grandes identidades literárias, que teve uma grande expansão na mídia, talvez muito maior do que todas as grandes obras constituídas, fechadas e amarradas em torno de si mesmas.

Tenho a impressão de que em todos os grandes autores poderíamos encontrar pontos de fuga da identidade literária. Joyce provoca a impressão de que há uma espécie de ponto de fuga no final da sua obra. Finnegans Wake, por exemplo, está de certo modo numa espécie de linha de fuga em direção a uma produção quase que a-significante – ou, pelo menos, nesta obra, Joyce tenta recompor uma linguagem que não é falada por pessoa alguma, que potencialmente poderia ser escutada pelo conjunto do planeta.

Em outras palavras, esse atributo “menor” para qualificar determinado tipo de expressão de caráter local, essa noção de “expressão menor” no campo da produção literária, não é forçosamente sinônimo de um degrau numa suposta hierarquia de tipos de expressão, numa espécie de divisão de trabalho literário. Hierarquia que permitiria dizer coisas como: “se você quer escrever só para você mesmo, ou para sua vizinha, muito bem, mas outros, escalando degraus superiores, vão poder chegar a grande literatura, e vão poder se impor nos grandes mercados da mídia”. Na verdade, o que se passa é o contrario: é exatamente a produção de uma pessoa que não escreve para alguém, nem mesmo para si própria, e que até, em alguns casos, vive seu processo de escrita como algo de estranho a seu ego, como uma espécie de intrusão produtiva, como um processo que pode ser ameaçador para seu sistema de representação de mundo – é exatamente essa produção singular e menor, esse ponto singular de criatividade – que terá um alcance máximo na produção de mutação da sensibilidade, em todos esses diferentes campos que chamei de revolução molecular.

Os sistemas de difusão de produção literária, artística, etc., são sempre concebidos como pertencendo ao domínio de uma pirâmide de controle e de seleção, que se encarna no fato de que há sempre um professor para corrigir as copias, um crítico para selecionar textos, um editor e assim por diante. Esse modo de difusão é muito segregativo do ponto de vista das produções selecionadas. Podemos muito bem imaginar sistemas de mídia e de difusão que não pertençam a esse sistema piramidal. Isso não me parece absolutamente utópico pois, afinal de contas, durante milênios a difusão dos mitos, dos contos, etc., não passou nem pela Globo, nem pelos dois ou três críticos que fazem a lei no mercado. E essas produções não deixaram por isso de encontrar seu campo máximo de difusão.

A mesma problemática se coloca em relação à imprensa alternativa e às rádios livres. O movimento das rádios livres na França sofreu os efeitos das intervenções do poder de Estado, a partir do momento em que ele parou de reprimi-lo. O Estado socialista na França disse: “muito bem, agora vocês vão fazer rádios livres numa boa, mas todas as rádios livres vão se submeter a um estatuto. Vamos subvencioná-las, mas para isso é preciso que elas tenham um mínimo de audiência, de qualidade e de utilidade social”. Com isso, noventa por cento das rádios livres francesas, caindo na tentação, se precipitaram num funil, com exceção de algumas poucas rádios (vinte ou trinta em toda a França, inclusive a Radio Tomate). Essas disseram: o que estamos afim não é de fazer grandes rádios livres, mas de fazer nossas rádios livres. O que estamos afim não é de difundir com meios sofisticados, nem de ampliar nosso alcance, mas simplesmente de que parem de encher nosso saco em nossa frequência de onda. Também não estamos preocupados nem com reconhecimento nem com eventuais julgamentos de valor; estamos pouco ligando para o índice de audiência, pois quem quiser que nos escute; se não basta virar o botão. Queremos ser os únicos a garantir aquilo que nos agrada, aquilo que é a nossa produção, sem nos referirmos aos novos tipos de julgamento da mídia que se instauraram há mais ou menos um ano”. Aí, a reação a essa atitude consiste em dizer coisas do tipo: “esse pessoal de radio livre tá pirado”. É preciso compreender bem o seguinte: quando nós, que nos recusamos a nos submeter a esses parâmetros, dizemos que não queremos fazer rádios profissionais, isso não significa que queremos ser amadores ou produzir coisas medíocres, mas apenas que não queremos nos tornar profissionais da nossa prática – o que não impede que estejamos afins de nos consagrar inteiramente a isso.

Voltando a Kafka: ele nunca se tornou um profissional do kafkismo. Depois é que apareceram muitos profissionais do kafkismo, pelas universidades e por toda parte…

 

Publicado originalmente em Micropolítica: Cartografias do Desejo
p. 113-115. Organização Suely Rolnik, 1986. Editora Vozes, Petrópolis.

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