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Queda Livre

agosto, 2020

Era uma aula de dança. Me fizeram ficar em pé por um tempo, só isso, e eu lá, até que me perguntaram:

-Você tá com medo de cair?
-Claro que não. Que besteira…

E fiquei rindo.

Que besteira falar dessas coisas. Ir na aula de dança pesquisar as sensações. Com o mundo dia após dia sendo exterminado.

Medo de cair?

É outra coisa o que sinto: um mal estar, um tremor nos olhos, um nó-bolo de raiva na garganta a querer sair de mim mas não há tempo, então engulo e saio correndo. Não há tempo para sensações não listadas e não automaticamente medicáveis.

Medo de cair? Me poupe.

Nossa terra vem sendo governada por homens estúpidos.

Não há tempo de habitar as imagens, imagens de sonhos quando se acorda, tampouco as pausas. Não há tempo de decentemente fumar um baseado, como quando em sabe-se lá quantos anos atrás, lá se ruminava mais as horas. Não há tempo de sentir o vento a fazer cócegas na pele, hoje é preciso já se pôr em marcha e agora a raiva maior do mundo é das pessoas na esquerda das escadas, um absurdo… Hora de chegar no serviço e elas paradas nas escadas-rolantes.

Tempo é dinheiro e o vazio: angústia sincera nas horas de se estar envelhecendo, ao olhar os dias a passar tão rápido. Tenho muitos mais anos do que antes tinha e talvez já não haja tempo para tantos sonhos. Me desespero: talvez um dia eu morra mesmo e de verdade. E então a vertigem. Há como adiar, e percebo: talvez seja a lactose, umas pontadas. Não há tempo de esperar os médicos.

Nessa terra, é preciso trabalhar até morrer.

Porque o tempo, é do tempo que estamos falando a todo tempo, tantas horas cansadas, de trabalho sem sentido, cabeça cheia e o vazio. Ônibus-cheios e metrôs e todo dia, engolir a comida, ver as notícias, engolir as notícias e remédios pra dormir. Será que devo? Perco horas dormindo, que não voltam. Relógios e trabalho.

Nas esquinas das padarias pomposas com seus carros… os colonizadores. Sim, esses branquelos a projetar as pelves, cortes de cabelos insossos… Esses homens com suas mãos gordas apertando os botões de controle dos carros, da televisão, da entrada de estacionamento do shopping. Feito garotos mimados cujas mãos cresceram mas não o cérebro. E que, sobretudo, falam em ordem… Ordem e progresso, ordem e família tradicional… Quer saber? Estou cansada.

Homens estúpidos a me pestear nas ruas, com os olhos sugam minha pele e me envelhecem desde o cenho. Sanguessugas, não me enganam com seus gracejos: são os mesmos que habitam as bancadas.

Quando perto de mim, quase corro: não os quero a me rondar feito lobos da pior espécie. Esses que passam álcool gel nas mãos ao sair de seus trambiques.

Penso que se eu cair, me devoram.

Será que me devoram?

Não sei. Nessa terra dominada por estúpidos todo cuidado é pouco. Nervosia latente a toda e qualquer hora, e um andar além da perna: estômago-faringe que se projeta acima-frente, sustentada pelos nós de meu corpo. É que me tiraram os ossos! O descanso do esqueleto, me tiraram. Sou pura irritação nervosa.

Nem ao ver as notícias a noite no sofá me permito entregar às almofadas como antes. Me sustento pelos olhos, a desacreditar. E me comprimem os ouvidos suas vozes arrogantes. Só pode ser brincadeira. Olho ao redor a entrever as pegadinhas, as câmeras. Me belisco para acordar do pesadelo. Mas é real.

Pessoas a andar nas ruas: pessoas a andar nas ruas e duras: feito tábuas. Tábuas com rostos a andar nas ruas. A pura ansiedade de ser visto-vista por abutres. Então tenta-se resolver num rápido caminhar e olhos freneticamente escusos. Mas nada resolve. Nada resolve essa coisa que se revira em nosso corpo sem qualquer permissão. Essa coisa, coisa-medo que não somos, mas parece ter se apoderado de nós.

E quantas terapias, sintomas que não se explicam, caminhos de cura que parecem que adoecem.

Volto atrás: evito sentir.

Me acomodo em meu corpo fechado. Minha armadura da carne. Pois é preciso minimizar os riscos.

Medicina preventiva é o medo. Lá estão eles a destruir nossas conquistas. Infectar as esperanças.

Ando nas ruas a me esquivar dos esguichos de água suja sobre as quais deslizam os pneus dos carros dos estúpidos, que passam velozes. Seus carros que passam com raiva de tudo que não seja eles, abutres violentos e com raiva, que quase nos atropelam no sinal vermelho.

Tensão constante enraizada em minha pelve, entalo a mim mesma no meu próprio esconderijo anti-abutres, meu corpo, será? Nessa bacia minha, feita pra desembocar, desaguar as águas de dentro, mas que águas? Não há águas em mim mas cinzas. Se a grande floresta seca, como não eu? Terminantemente não sinto nada.

Mas a gravidade continua a nos puxar pra baixo. Você sente? Sente a gravidade quando anda ou apenas a presença sorrateira dos abutres?

Se busca ainda sentir algo, um calor de gente, uma água a irrigar os corpos, venho coletando algumas ideias, desde respiros nos confins da Terra. Desde ínfimas delicadezas, nas quais ninguém aposta porque pequenas. Esqueço os abutres por uns instantes. Suavizo os joelhos e me deixo cair em meio ao caos.

Conforme em queda livre é que percebo, não sem pingos de alívio salgados a desaguar na boca: aqui não há perigo. Conforme suavizo os joelhos e respiro é que vejo: do chão não passa.

Aceito a gravidade quando posso. Quando consigo, saco os pregadores de meus músculos e novamente sinto: tenho ossos. Sinto a espinha a me alongar e os meus pés no chão. Conforme mais ainda suavizo minha bacia, me renovo nos eixos, sinto desaguar: há água, ainda! Estou viva. E há prazer no mundo.

Sutileza: essa língua os abutres não falam, e digo mais: tem medo! Eles temem os olhos tranquilos. Olhe pra eles assim e verá abutres confusos. Eles não dançam. Observam de braços cruzados.

A estupidez desses homens não os permite apreciar a estranheza sensual do mundo, veja você, eles não podem ver além das imagens imediatas, superfícies. Esses homens não possuem os meios necessários para cultivar a alegria familiar que há na matéria. O que dizer quanto a invisibilidade do tempo a dançar nos ares? Em seus corpos reina o desoxigênio.

Por isso, me deixo cair. E então percebo: não é besteira. Nesse gesto estou a me distanciar dos abutres o quanto posso, habitar outros tempos, falar outra língua. Só assim posso respirar.

Agora o ar me entra e sai pelas narinas, minha língua mole na boca conforme meus olhos se permitem descomprimir. Não há problema em olhar-demorar. Posso ir aos poucos, sem pressa em desvendar o mundo de uma só vez. Na contramão dos estúpidos, é preciso desacelerar o medo. Lembrar das crianças, suas perguntas que apenas esboçamos responder e não parecer ignorantes, mas no fundo sabemos: há mistério.

É preciso dar vazão à raiva, para que ela não nos consuma num caminho sem volta. Não há risco em cair, há prazer. Um tesão a envolver o mundo em queda livre. Solto os meus nós e respiro: habito o além-pânico. E frente a frente com os abutres, sinto seu hálito, sua fome de dilacerar o que é desaprovado por suas mentes julgadoras, mas não me movo. Ocupo meu espaço no mundo. Aquele que tenho por direito, esse não vão me tirar. Nua frente a todos que me querem devorar, que me devorem! Estou a cair e rir na frente dos estúpidos. Eles não saberiam cair, se lhes instigo tropeçam duros, batem a cabeça no poste. São demasiado brutos.

Conforme caio e me deixo, relaxo os desassossegos deles em mim. Não é justo eles em mim: então os solto. Enquanto isso eles apertam os botões dos controles: da televisão, das garagens, dos carros. Querem controlar a vida. Apertam os botões com raiva, não aceitam, uns garotos mimados: apertam e torcem o bico. Mas não eu. Aceito as coisas como são.

Conforme inflamam seus nervos, conforme apenas inspiram sempre sem nunca soltar, há quem expire. Há quem protagonize o próprio corpo.

O estado de queda é força, quando consigo, e já digo logo: não é sempre. São momentos-instantes de conexão, preciosos. É quando se permite suavizar, na contramão do mundo. Não é fácil.

Mas quando posso, quando sou permitida pelas coragens, eu rio na cara dos estúpidos. Eles não mudam: apodrecem em seus trambiques. Esbravejam em seus palanques e as promessas de sempre. Mas há quem não nasceu ontem: não me enganam.

Por fim peço perdão aos verdadeiros abutres, aqueles que habitam os céus, por fazer uso de vossos nomes a ilustrar estúpidos. Sei que são mais que isso: muito mais que homens estúpidos. Plainam tranquilos nos ares e fazem o que devem: conforme sua própria natureza. É que as imagens me chamam, e eu não passo de uma oportunista, conforme a minha própria natureza: transmuto imagens em palavras falhas.

​Respiro: ocupo meu lugar no mundo. Em meio a homens estúpidos? É verdade, mas já não os quero chamar de abutres, não merecem. São bandeirantes, assassinos com seus facões… Que a tudo destroem por onde passam, toda a vida. Mas mal sabem, mal sabem eles que em tempos de queda do céu, são eles mesmos e ninguém mais a maquinar a própria morte. Não sabem cair, os brutos. Na iminência da queda se desesperam; se agarram às suas posses, escolhem a asfixia. Mas não nós: respiramos. Ou ao menos tentamos, não é assim? E a vida segue.

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Esse texto foi escrito em 10 de agosto de 2019, dia que ficou marcado como o “dia do fogo”, pelo grande número de focos de queimadas florestais registrados na região amazônica. As queimadas foram organizadas e promovidas por fazendeiros da região de Novo Progresso, no Pará. Esse dia acabou ganhando mais visibilidade por afetar também a região sudeste, com o famoso dia que virou noite em São Paulo.

É a partir desse contexto, e da percepção de uma masculinidade tóxica e destrutiva, profundamente enraizada na história, na cultura e na política de nosso país, que sento para escrever esse texto-expurgo de tanta aflição entranhada no corpo.

Um ano depois, o silêncio sobre o dia do fogo permanece, e ninguém foi responsabilizado.

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