pesquise na USINA
Generic filters

Já não somos inocentes

1950

Publicado originalmente em "Jacques Rivette Já não somos inocentes", catálogo da mostra no CCBB, pgs 23-28.

"Out 1" (1971)

Assistir hoje a um filme de Mauritz Stiller, F. W. Murnau ou D. W. Griffith é tocante, e também revelador da excepcional importância que todo e qualquer gesto humano (na verdade, que o funcionamento de todo o universo sensível) assume em seus filmes: um ato tão corriqueiro quanto beber, caminhar ou morrer adquire densidade – a plenitude de significado e a evidência confusa do símbolo que sempre transcendem interpretações e limitações, e que gostaríamos de ver nos filmes de hoje. Jean Vigo e Jean Renoir são, talvez, os únicos que ainda sugerem uma incessante improvisação do universo, uma perene, calma e convicta criação do mundo. O silêncio nada explica. Os problemas começam com os seguidores dos “pioneiros”, com as reflexões sobre o milagre. Toda reflexão implica análise, e a análise evidentemente deve começar pelas bases: nós fazemos filmes sintéticos, ainda desajeitados e ingênuos, dos quais escaparam toda vida e todo vigor. A estranha sistematização da linguagem e da sintaxe que Griffith teve de elaborar, de forma mais ou menos confusa, para poder se expressar, e que foi apenas uma consequência superficial de seu universo específico, introduziu o verme na fruta que, a partir de então, não parou de, literalmente, desvitalizar o cinema. Trata-se da lenta criação de uma retórica, sempre mais refinada e mais cheia de nuances, mas também sempre mais impiedosamente analítica.

Cada descoberta, começando pela tomada única ou pelo primeiro “tableau”, quase invariavelmente significa sempre outro passo direcionado à análise e, mais especificamente, direcionado a uma elipse espaço-temporal (um close-up é uma elipse do contexto espacial); em nome da superioridade eminente da sugestão, a recusa, que logo será sistematicamente adotada, de mostrar qualquer coisa além do inofensivo e sem derramamento de sangue, a fuga inquieta do gesto vivo, colocado, com sua tranquila falta de vergonha, em um espaço concreto, comandado por uma fatal e obstinada dissecação do real. O espaço fílmico “decupado”, fragmentado, rapidamente desorientado na acumulação de ângulos e movimentos de câmera divergentes e fora do comum perde toda a realidade e mesmo toda a existência. Nós chegamos ao único cinema do tempo, no qual não existe nada além da pura duração de sucessivos atos sem densidade ou realidade: é o nascimento da perigosa, e inteiramente gratuita, noção de ritmo e velocidade, que tenta nos pôr para fora dos trilhos substituindo a existência e a presença pela acumulação, com a esperança de enredar uma presa a partir da frenética multiplicação de sombras fugidias.

Um cinema de discurso retórico, no qual tudo tem que entrar em conformidade com as fórmulas, ordinárias, polivalentes e estereotipadas para todos os tipos de uso: o universo é capturado e destruído pela armadilha das convenções formais.

Cinematograficamente, isso corresponde às convenções da razão e, portanto, às convenções da existência: um universo fustigado pela superficialidade, irrealidade, debilidade, ineficiência, insignificância, do tipo que nada mais pode do que gerar a mais completa desconfiança, devido às convenções formais através das quais ele aparece; muito mais do que antes, não existe aqui uma separação entre forma e conteúdo: o objeto como um todo é ato de aparição; a premeditação e a rotina o denunciam, de modo automático e irrevogável. O grande erro, então, parece ser o erro da linguagem cotidiana, indiferente ao seu objeto; este de ter uma “gramática” válida para toda e qualquer narrativa, ao invés de um estilo necessário, um estilo de que a narrativa necessita – na verdade, um estilo gradualmente criado por ela no curso de sua expressão. O realismo não pode ser uma solução se entendermos o termo apenas como sinônimo, com a substituição – com estruturas preexistentes, intercambiáveis e imutáveis – por símbolos convencionais (totalmente adaptados às suas funções e a seus contextos); com a substituição por outros símbolos que derivam todo seu valor da própria referência a outros mundos, mundos que não compartilham nenhuma medida em comum com o mundo da tela. O verdadeiro realista se recusa a analisar e dissecar a própria visão a priori, seguindo os esquemas comuns e empregando os bisturis de sempre; ao invés disso, ele transcreve sua visão, do jeito que ela é e sem intermediários, em celuloide, ao colocar a câmera em direto contato com a realidade da visão dele.

O “conteúdo”, em seu esforço natural de se expressar, torna-se forma e linguagem: o organismo vivo não é sem forma (apenas o artificialmente animado o é). É necessário um ato de fé: no poder natural, na força vital do interior do universo, algo precisa nascer do mundo sensível e se expressar, com ingenuidade: a passagem para a existência, para a aparência, dá forma a esse nascimento automaticamente – mas isso apenas se nenhuma lamentação, nenhum preconceito, nenhuma complexidade e nenhum (paralisante) mau cheiro da velha retórica perturbar o jogo, o campo magnético do milagre natural, e se nenhuma apreensão, impaciência ou falta de fé fizerem com que a mão que segura a câmera trema. Estamos sofrendo de um sufocamento, de uma intoxicação retórica: temos de voltar a outro cinema – transcrição em celuloide, pura “escrita”, estabelecimento de um universo e suas realidades concretas, sem interrupções pessoais na maquinaria (…). Simplesmente inscrever no filme as manifestações, os modos de vida e de existência, o pequeno cosmos individual; filmar de forma calma, documental; deixar o universo viver, enquanto a câmera é reduzida ao papel de testemunha, de olho. Jean Cocteau estava certo quando introduziu a noção de indiscrição: isso não poderia ter sido dito de melhor maneira. É preciso tornar-se voyeur. Quando paramos de procurar por elas (“Você não teria me achado se tivesse procurado por mim”), as descobertas visuais se dão uma após a outra sem interrupção, na ligação que fenômenos observados sucessivamente têm entre si, na relação deles com um olhar do qual sequer suspeitam: eles não estão operando por meio desse olhar. Eles estão em seu estado natural.

A personalidade do criador se manifesta, é claro, por sua “escolha” de ângulos e pela forma como ele joga com a retórica convencional, desde que o que ele queira mostrar seja diferente de um espetáculo anônimo e exija, se não um aparecimento completo, um olhar novo, mais curioso e despido de preconceitos, que possa por si só ser totalmente comensurável com o espetáculo. O universo comanda esse olhar, e o próprio olhar, ele mesmo impõe e cria esse universo; o universo do criador nada mais é do que a manifestação, a completa eflorescência desse olhar e modo de aparecer – olhar que nada mais é do que a aparição de um universo.

Isso é digno de ser retomado ao final de uma análise cujas necessidades internas nos levaram a uma divisão artificial do real, cuja existência mesma, absurda e contraditória, não pode ser tratada diretamente como objeto, mas precisa se materializar ao fim de nosso exame, como aquela que naturalmente honra nosso exame – como sua prova. Universo e olhar são uma mesma e única realidade: realidade que só existe por meio do olhar que dirigimos a ela, e esse olhar, em contrapartida, depende totalmente de sua relação com a realidade. Realidade indissociável, na qual aparência e aparição se confundem, onde a visão pode parecer criar questões (os travellings de Renoir), e as questões parecem estar implicadas na visão – sem antecedentes ou relação causal. Uma única e mesma realidade com duas fases, confusa e fundida no trabalho criado.

Todo o resto é espetáculo.

Post-scriptum: lugares comuns e verdades básicas.

O filme certamente é uma linguagem, e uma verdade profundamente significativa. Mas é uma linguagem composta, precisamente, de símbolos concretos, que resistem a serem reduzidos a fórmulas. Parece desnecessário relembrar a unidade do quadro, do plano: gravação irremediável do instante. Aí jaz o erro de toda aproximação literal (gramáticas, sintaxes, morfologias), não importa que diabos sejam suas intenções. Invariavelmente, a sistematização negligencia, a priori, a complexidade da realidade sensível, enquanto monta seu edifício teórico. Neste tipo de mídia não pode haver gramáticas, ou sintaxes baseadas em regras, mas apenas rotinas empíricas, generalizações apressadas. Nenhum plano pode ser encaixado em uma fórmula que não abranja sua rica complexidade – a virtualidade e o poder que, em sua extrema confusão, constituem a realidade da existência do plano. Se atentarmos a isso, poderemos discernir algumas das linhas de força que se orientam como resultado do seguimento de uma direção tomada por particularidades sensíveis (que permanecem imponderáveis) ao “campo” magnético. Não existe nada como as palavras, enquanto símbolos abstratos e convencionais, organizados de acordo com regras estáveis. Uma tomada cinematográfica sempre permanece no time do acidental, do sucesso momentâneo que não pode se repetir. Uma frase, por outro lado, pode sempre ser reescrita arbitrariamente. Convenções sintáticas e retóricas são consubstanciais à palavra, e sua participação deve ser regida segundo a mesma convicção social, se elas se permitirem o entendimento mútuo: a cruzada de Jean Paulhan² contra o “terror” literal encontra sua justificativa nesses fatos. Mas a sintaxe e a retórica, no filme, são um revestimento artificial lançado sobre o que é vivo, que escapa a elas, ou sobre aquilo que elas paralisam, congelam e matam: nada de Paulhan é concebível aqui, quando o terror por si só é a lei. A expressão natural que, em uma linguagem convencional e artificial, precisa se conformar a suas convenções e artifícios, demanda uma linguagem sem leis, sempre improvisada, criada, cautelosamente aventureira: uma improvisação contínua, uma criação perpétua.

 


1 – “We are not innocent anymore”, Senses of Cinema, n. 61, dezembro de 2011 (disponível em: http://sensesofcinema.com/2011/feature-articles/we-are-not-innocent-anymore/). O texto de Rivette, originalmente chamado “Nous ne sommes plus innocents”, apareceu pela primeira vez no Bulletin intérieur du Ciné-club du Quartier Latin, em janeiro de 1950. Traduzido do inglês por Gabriela Wondracek Linck.

2 – Jean Paulhan (1884-1968) é um famoso escritor, crítico literário e editor francês. Rivette parece estar se referindo à sua notável obra de crítica literária As Flores de Tarbes, ou Terror na Literatura, publicada em 1941.

 

Boletim da USINA

Quer ficar por dentro de artes e tudo mais que publicamos?

Nosso boletim é gratuito e enviamos apenas uma vez por mês. Se inscreva para receber o próximo!

Boletim da USINA

Quer ficar por dentro de artes e tudo mais que publicamos?

Nosso boletim é gratuito e enviamos apenas uma vez por mês. Se inscreva para receber o próximo!