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OV3RGOZ3

junho, 2014

Parece pouco imaginável que a síntese vital de Le Corbusier caiba nas volutas transbordantes do corpo de Josephine Baker. E não cabe mesmo. Mas é o encontro entre essas que são duas das figuras mais icônicas do modernismo (ele na arquitetura, ela na dança) que se explora no MAR¹. Em 1929, os dois tomaram juntos um navio transatlântico com destino ao Rio de janeiro, e desembarcaram na zona portuária, bem aos pés de onde é hoje o Museu. Esse encontro breve, ainda que não tenha deixado marcas diretas na obra de um e do outro, tem sua força (o que fica claro nas cartas exibidas de le Corbusier para Josephine, em 1935 e 1936, 7 anos depois).

O que interessa à curadoria, no entanto, é fazer disso um ponto de partida. Não há muitos documentos que tratem desta viagem – senão algumas fotos, uma inclusive, do casal numa festa a fantasia no navio, bastante curiosa, e os relatos escritos de Le Corbusier. Inti Guerrero e Carlos Maria Romero transformam o encontro improvável numa rede de desdobramentos. O moderno serve de disparador para pensar questões contemporâneas de comportamento e transgressão.

Na primeira sala, dedicada à Le Corbusier, há uma grande instalação de Ana Maria Tavares que faz do espaço expositivo um navio. Com poltronas disponíveis, uma parede de espelhos e duas projeções que exibem viagens transatlânticas do período, o espectador é convidado a se aproximar da atmosfera do affair. Ao redor, uma série de relatos, fotos, esboços e projetos de Le Corbusier, incluindo o projeto para o prédio do MEC, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Mais interessante, no entanto, são as sutilezas da curadoria. Logo na entrada, quase despercebido, há um estudo de ocupação de navio negreiro, e em seguida, relatos de Le Corbusier que comparam os prédios modernos à estrutura dos navios. O que pouco se sabe é que o modernismo, e em especial os arquitetos modernos, simpatizavam com algumas soluções eugenistas, o que sugere uma leitura estreita entre estes dois trabalhos.

Logo em seguida, fotos de Josephine e quadros de Di Cavalcanti com seus corpos mulatos nos fazem pensar no lugar do corpo negro feminino, sua fetichização. É certo que, se por um lado Josephine foi um grande referencial na dança moderna, por outro, era também um corpo distante do europeu, instigante com sua saia de bananas e suas curvas pouco usuais, o que certamente encantou o arquiteto francês num tempo de intenso gosto pelo exótico. Mas ao contrário de Le Corbusier, foi Niemeyer quem usou as curvas femininas como inspiração, e isso também está exposto.

É na sala seguinte que essas questões são mais problematizadas. Há muitos trabalhos de teor político e resistente, um grande vocabulário queer e duas subcuradorias de Conrad Ventur – sobre o ator Mario Montez – e Fernanda Nogueira – sobre o Movimento de Arte Pornô.

Esta segunda surpreende com uma boa quantidade de material: vão de panfletos e manifestos à fotos e vídeo de registro das performances, incluindo um grande falo esculpido em madeira que foi o prêmio de poesia da época. O movimento, surgido na década de 80, se comprometeu a pensar uma nova ocupação para o espaço público. Teve início com a “passeata-show” pelo topless literário do grupo que se intitulava Gang, em Ipanema. Era uma reação à repressão corporal alimentada pela ditadura militar e consistia em performances de nudez, com lemas como “OV3ERGOZ3”, “nem deus resiste ao tesão de uma puta revolução” e outros, num exercício de inversão de valores que integrava poetas de vários lugares a propósito de uma poesia marginal. Sobre o período, o presidente Figueiredo ordenou a “cruzada contra a pornografia”, uma forma de caçar todo tipo de desvio de modelo. Ainda sobre o período da ditadura, estão expostos vídeos do grupo Secos e Molhados e Dzi Croccretes, pervertendo os modelos de masculinidade.

Do outro lado da sala, curiosa é a maquete da casa que Adolf Loos projetou para Josephine. Este arquiteto, precursor da “nova objetividade”, ficou conhecido pela tese “crime e ornamento” de 1910 e alegava que o ornato era de natureza primitiva e selvagem e que a sua omissão era a garantia da redução de horas de trabalho e aumento de salários. Com isso, influenciou grande parte da discussão sobre o trabalho, o tempo e o funcionalismo na modernidade. No entanto, é a própria Josephine o ícone de um corpo anárquico, primitivo e cômico (nada econômico) que caminha na direção contrária da limpeza funcional do International style.

É muito positivo o cuidado que os curadores tiveram em tratar o corpo. Não há prioridade entre o vocabulário da “dança” ou da “performance”. O que parece nortear as escolhas são as poéticas, em diferentes suportes, que exploram as deixas de Josephine. O que se percebe, ainda assim, é um desdobramento muito maior das questões da dançarina (corpo, raça, gênero) em relação ao legado de Le Corbusier: podemos ver um vídeo do desmanche da perimetral; a influência do arquiteto no projeto da ponte Rio-Niterói; e o projeto Pedregulho. Mas o que se percebe diante disso, é uma proximidade das relações de Le Corbusier com a cidade do Rio (vinculadas a sua viagem aos trópicos), enquanto que o legado de Josephine se explora de maneira menos restrita – há performes estrangeiros, uma série de fotografias do cake walk (dança praticada por escravos nos EUA), uma vitrine dedicada ao Voguing (o nome diz respeito aos bailes que aconteceram no Harlem na década de 60, reconhecidos pelas performances sociais) e links com a dança pós moderna.

É trunfo da curadoria optar por uma leitura múltipla e nada linear, de modo a ter ampla liberdade de se enveredar por caminhos ousados, o que faz do encontro do casal um disparador inventivo, cabendo como um bom exemplo de curadoria criativa – prática que vem ganhando cada vez mais força como modo de desenhar questões a partir do arranjo específico de trabalhos.

Por fim, já fora do espaço expositivo, a curadoria conclui bem seu arranjo ao surpreender com uma fotografia de Le Corbusier nu. Se o visitante já tinha esquecido que a exposição partia do encontro do casal, o corpo cicatrizado do arquiteto relembra o contraponto extremo que estabelece com a dançarina, tendo, contudo, nos dado boas relações.

MOVIMENTO DE ARTE PORNÔ
(manifesto feito nas coxas)

-Antes de dominar a palavra escrita, o homem já desenhava sacanagem na parede das cavernas
-Masturbação literária não gera porra nenhuma
-Arte é penetração e gozo.
-Trepar, parir e criar fazem parte de um mesmo processo
-O pornopoema vai por no poema
-Os caras do poder baixam o pau com medo de baixar as calças… e acabar levando pau.
-A rapaziada tá cagando pra Literatura Oficial
-Pela suruba literária: um processo concreto da práxis marginal na s a c a n a g e m tropical e o escambau.
-O poema pornô taí pra abrir as pernas e as ideias.
-Viva o BUM da poesia em toda arte, em toda parte.

(maio de 1980)

TODO MUNDO NU

GANG
RIO 13-2-82

Nas laterais do panfleto:
*Pelo stripitisi da arte
* Pão Praxer E Puyzia

OV3RGOZ3 NÃO MATA

¹ – A exposição Josephine Baker e Le Corbusier no Rio– um Caso Transatlântico estará no MAR – Museu de Arte do Rio até o dia 17 de agosto

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