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Tantas perguntas a Rubens Figueiredo

abril, 2014

Rubens Figueiredo é professor, tradutor e escritor. Ganhou dois Jabutis pelas suas ficções, um em 1998 por As Palavras Secretas, e outro em 2002 por Barco a Seco. Como tradutor, já publicou uma extensa lista com mais de 50 títulos. Entre elas americanos como Susan Sontag e Phillip Roth, e russos como Liév Tolstoi, Anton Tcheckhov, Maksim Gorki e Ivan Turguêniev. São suas as elogiadas traduções publicadas pela Cosac Naify de Guerra e Paz, Anna Karenina e Pais e Filhos.

USINA – É interessante pensar que qualquer tipo de leitura exerce influência sobre alguém que escreve. No seu caso, sendo um tradutor de grandes obras, você entra na obra de uma forma muito diferente do que muitos escritores entrariam. De certa forma você conhece o estilo dos escritores que você traduz de uma maneira muito mais detalhada do que outros que lêem a obra por puro gozo. Como que o seu ofício de tradutor te influência no de escritor?

Rubens Figueiredo – Comecei a traduzir como forma de ganhar a vida. Ou seja, vendendo minha força de trabalho numa sociedade em que o trabalho é uma mercadoria. E assim continuo vivendo até hoje. A presença inevitável, permanente e constitutiva dessa forma de relação de trabalho no tipo de atividade literária de que dependo para viver, e nos frutos dessa atividade, sem dúvida influenciou minha maneira de ver a literatura em geral. Quero dizer, por exemplo, que não consigo acreditar em “puro gozo” em matéria de literatura, para citar uma passagem de sua pergunta. Há sempre muitos interesses envolvidos nas palavras. Mikhail Bakhtin frisou bem isso. Digamos, portanto, que meu trabalho de tradutor influencia meu trabalho de escritor porque – entre outras coisas — me obriga a desconfiar dos mecanismos que disfarçam e apagam as relações econômicas que permeiam as opções literárias, estéticas etc.

USINA – Em uma reportagem da Piauí de 2010 (Nossos Três Russos), Paula Scorpin cita a diferença entre os três maiores tradutores de russo no Brasil: “Enquanto a característica que mais salta à vista em Paulo Bezerra é o abrasileiramento do texto, e em Boris Schnaiderman é o seu preciosismo exaustivo em busca de uma perfeição que sabe inatingível, a de Rubens Figueiredo é o rigor na fidelidade ao texto original.”Entre essas duas formas de traduzir, regionalizar o texto e se manter fiel ao original, há uma distância grande, mas uma não exclui a outra. Porque a preferência pela segunda forma? 

Rubens Figueiredo – Não creio que o juízo que você cita seja pertinente. Parece um pouco esquemático, algo escrito para arredondar um texto, produzir um esquema com alguma simetria de momento. Coisas de jornalismo. As questões da tradução são inúmeras. Mas podemos partir da ideia de que é inútil tentar se apoiar num conceito positivista de tradução. Não existe a tradução, mas uma (artigo indefinido) tradução, feita e lida num certo momento, em certas circunstâncias. Os critérios da tradução podem variar conforme as exigências do original. Cabe ao tradutor ter uma visão crítica do livro que está traduzindo, do que se disse a respeito dele, do que ele representa para o tempo histórico em está sendo feita a tradução. Portanto a questão vai muito além de aspectos técnicos.

USINA – É comum seu nome ser tão associado à criação como à tradução literária. Ultimamente, com tantas excelentes traduções do russo, junto com a crescente publicação desses autores, seu nome vem mais acompanhado da designação tradutor. Você acha que uma das duas carreiras faz sombra sobre a outra?

Rubens Figueiredo – Não sei. Nem paro para pensar nisso. O fato é que, como escritor, a palavra “carreira” quase me dá calafrios. Está associada justamente à máquina de alienação e desumanização inerente às relações sociais vigentes que, a meu ver, a literatura deveria questionar e pôr em xeque o tempo todo, ou o mais possível.

USINA – Em geral, a literatura russa é associada aos clássicos do século XIX. Na sua opinião, por que os escritores russos do século XX ainda não ganharam tanta atenção do público leitor brasileiro? É questão de qualidade ou de mercado?

Rubens Figueiredo – É uma questão de dominação econômica. Para usar uma palavra clássica, é o imperialismo em ação. O fato do comércio de livros apresentar cifras bem menos consideráveis do que o comércio de filmes, de games, de patentes de remédio ou de armas não significa que ele seja indiferente ao centro do poder mundial. A competição supõe o silenciamento dos concorrentes. Acho que talvez se trate daquilo que os sociólogos chamam de capital simbólico.

USINA – O que mais lhe chama a atenção na produção cultural Russa além da literatura?

Rubens Figueiredo – Há alguns anos ajudei a transliterar nomes russos num livro enorme, meio picareta, sobre a música de concerto do século 20. Os nomes russos, ou eslavos, ocupavam quase metade do índice. Maestros, compositores, instrumentistas, coreógrafos, diretores etc. Além disso, são impressionantes as grandes polêmicas sobre o destino da Rússia, que atravessaram os séculos 19 e 20 e nas quais tantos intelectuais se empenharam a fundo.

USINA – No que diz respeito às relações culturais com a Europa, Roberto Schwarz em seu célebre ensaio “As ideias fora de lugar” compara Machado de Assis a clássicos russos como Gógol, Gontcharov, Dostoievski e Tchekhov. Nesse sentido, com o ideário antropofágico ainda vivo na cultura brasileira, é possível através da literatura russa compreendermos melhor certos aspectos do nosso próprio país?

Rubens Figueiredo – Vou citar um escritor que Schwarz não pôs na lista. Tolstói, em 1859, escreveu um artigo intitulado “Quem deve aprender a escrever com quem: as crianças camponesas conosco ou nós com as crianças camponesas?” Nele, Tolstói contesta a suposta supremacia cultural e humanística dos países ricos, questiona as ideias de progresso e arrisca: “Vemos nosso ideal à frente, quando ele está atrás.” Ou seja, nas crianças e ainda por cima camponesas. A questão em jogo para a Rússia na época, e enraizada no centro de sua literatura, se mostra bem atual: é possível, viável ou sensato um país tentar alcançar um modelo de progresso, ou espelhar-se numa imagem de progresso que depende justamente da desigualdade e da exploração de outros países? Uma riqueza que depende da pobreza? E numa cultura que tem, muito provavelmente, como sua função principal justificar esse processo de dominação?

USINA – Você tem uma relação muito ampla no mundo editorial: editava uma revista pela 7Letras, tanto é publicado como traduz pela Companhia das Letras, e é tradutor contratado da Cosac Naify. Tirando outras mais editoras nas quais você teve um vínculo nos anos 90 (Ed.34, Record e Rocco).  Como você enxerga esse mundo do mercado editorial? Há um interesse por novos escritores?

Rubens Figueiredo – Com franqueza, jamais entendi o mercado editorial. Nem tento entender. O problema para os novos e velhos escritores me parece que está na dificuldade de sermos aceitos pelos nossos leitores. Quero dizer, os livros escritos em inglês contam com uma espécie de aprovação prévia, independente de uma apreciação pessoal. Nesse aspecto, a máquina de dominação e propaganda parece já ter alcançado um estágio em que impregna o ar que respiramos.

USINA – Sobre a revista Ficções (publicada pela 7Letras até 2007, na qual você era um dos editores). Como foi fazer essa revista? O intuito principal era mostrar obra de escritores estrangeiros ou o trabalho de tradução feita sobre elas?

Rubens Figueiredo – Acho que a ideia era publicar escritores novos, que não tinham livros publicados. A gente lia e escolhia o que parecia melhor.

USINA – Para finalizar. Mais do que como professor, com você enxerga a função de educador na escola e no seu caso em particular? Como você enxerga a educação literária no Brasil?

Rubens Figueiredo – Nossa sociedade é muito desigual. A função de educador não pode ser a mesma, em relação a alunos ricos (ou meio ricos) e pobres. Têm pouca utilidade as teorias pedagógicas que se pretendem universais. Os rankings e as classificações compreendem uma injustiça intrínseca e acabam servindo como legitimação da desigualdade. A educação literária deve ter isso em mente e pelo menos tentar impedir que a literatura seja mais uma forma cotidiana de humilhação para as classes ditas subalternas.

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