Com um pedaço de faca
é possível talhar
uma casa é possível talhar
uma porta um poço um poema
eu você dois espelhos
refletindo
o espaço vazio da sala
o gato dormindo
sobre a estante
eu você sorrindo
sempre
e o mofo nos consumindo
os dentes
naquela tarde úmida
em que você me dizia
o teto irá desabar
e nos levará com ele
mas era o tempo nos observando a vida
e nossos amigos adoravam aquela infiltração.
Com um pedaço de faca é possível talhar
uma banheira uma janela um porta-retrato
eu você sorrindo em alguma parte do bairro
onde encontramos aquele gato
ensopado
de chuva
e como ele adorava aquela infiltração
eu você o sofá a mesa de centro
o jarro de flores
a cozinha
os talheres
um pedaço de faca
é possível talhar
um banco na frente de casa
um tapete um olho mágico
você regando as flores
escolhendo as cores
do jarro
e onde comprar
neste bairro
chuvoso
eu você o gato
sob a colcha de retalhos
observando aquela infiltração.
Com um pedaço de faca é possível talhar
um vaso um ralo o centro metálico
da pia
toda a fiação da casa
girando em torno do gato
girando em torno do ralo
girando em torno daquela infiltração.
Com um pedaço de faca
é um possível talhar uma linha
na superfície do tempo
eu você o gato e a gravidade
atuando
na cor desbotada das árvores
na cor desbotada das
vidas que correm agora
pela casa
sob a velha
infiltração.
Com um pedaço de faca
é possível talhar
uma casa é possível talhar
um furo no teto
eu você um espelho no porta-retrato
enquanto
a infiltração
nos penetra o corpo
e nos
desmancha
o rosto
nos
levando
gradualmente
para
algum
lugar
da
casa
onde
nunca
foi
preciso
um
pedaço
de faca.
Felipe Andrade, junho 2016.
Oração
Primeiro veio o silêncio
Depois uns ruídos de igreja
E alguém disse amém
Para outro alguém
Bem depois chegaram
As subordinadas e as
Insubordinadas
Atadas em um nó
Dentro da cabeça
De alguém
Adiante vieram
As coordenadas, finas
E dançamos até se
Cansar em nós mesmos
E o sujeito soltou o verbo
Estava triste e interrogativo
Parados em frente ao futuro
Mãos em forma de oração
Rezavam para não chover
Suas frases eram passivas
Mas riam de tudo
Como meninos que riem
Por nada.
Milton Oliveira
Novembro/2016