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A revanche do sagrado: entrevista com Edimilson de Almeida Pereira

janeiro, 2016

Foto de Prisca Agustoni

Edimilson de Almeida Pereira é poeta nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais. Professor de literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, se formou em Letras, possui dois mestrados: em literatura e em ciência da religião, além de doutorado em comunicação e cultura. Estudioso da cultura mineira, Edimilson flerta constantemente com a antropologia. Já publicou diversos livros, entre pesquisas e poemas. Em 2003, lançou uma série de volumes reunindo sua obra poética, são eles: Zé Osório Blues, Lugares Ares, Cada da Palavra e As Coisas Arcas.


 

USINA: O corpo e a dança são elementos fundamentais na sua obra. Por outro lado, o texto poético (ou o que se convencionou chamar de texto poético nos últimos séculos) tem como natureza o registro, a marca no papel: ao contrário da dança, que não deixa marca do movimento, o poema, pelo contrário, é o registro do movimento. Como você enxerga essa diferença?

Edimilson: Com a sua licença, prefiro não pensar as relações entre o poema e a dança como uma equação que se restringe à diferença factual entre uma e outra experiência de linguagem crítico-criativa. No meu entendimento, essas relações se apresentam como um labirinto que, uma vez visitado, nos reconecta ao princípio inventivo que garante a vitalidade de nossos discursos. Para deslizar com alguma densidade por esse labirinto, atenho-me à seguinte fração do questionamento proposto: “ao contrário da dança, que não deixa marca do movimento, o poema, pelo contrário é o registro do movimento”. Ao considerar o meu percurso de aprendizagem poética, não penso exatamente em diferença, mas em suplementação de práticas e de significados que podemos construir a partir das relações entre uma dança-escrita e um poema-dança. Levo em conta essa premissa (cuja pertinência reside na possibilidade de se refazer, sempre que a liberdade do ato criador seja ameaçada por agentes internos ou externos a ele próprio) desde que me aproximei de uma certa modalidade de dança que escreve os seus movimentos e de uma certa modalidade de poema que, por sua vez, apaga o grifo de seus movimentos.

No primeiro caso, penso na cartografia da dança-escrita analisada pela professora Graziela Fonseca no livro “Bailarino-pesquisador-intérprete: processo de formação” que, dentre outros aspectos, evidencia uma dança cuja existência depende de sua capacidade de permanecer como uma escrita a ser decifrada. Um exemplo instigante é o do devoto José Arthur (in memorian), da Comunidade dos Arturos (Contagem/ MG) que, ao carrear o gado nos dias normais de trabalho, sabia da importância de reescrever, através de seu corpo em dança, aqueles mesmos movimentos quando carreava a bandeira do terno de Congo.

No segundo caso, vejo como provocação à convenção do texto poético o percurso que Ricardo Aleixo desenvolve durante as apresentações do seu “poemanto: ensaio para escrever (com)o corpo”. Teoricamente, o autor observa: “Sou, quando coloco sobre/ meu corpo (negro)/ o pedaço de pano (preto)/ coberto por palavras grafadas/ com tinta (branca)/ ao qual dei o nome/ de poemanto,/ um performador.”A partir dessa série de palavras grafadas– marcas do poema “Para uma eventual conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”, publicado pelo autor em seu livro Trívio, em 2001 – o que se nota é um contínuo movimento que, simultaneamente, apaga as linhas da escrita e sugere ao leitor-expectador inumeráveis experiências de significado, conforme salienta Ricardo Aleixo: “Tudo é texto, mesmo/ que não de todo legível.”

Os exemplos citados assinalam minha opção pela ruptura com a equação que resolve as diferenças apenas pela constatação de suas oposições, percepção essa que, em larga medida, se consolidou com o convencionalismo do texto poético. Sem desconsiderar o que há de fértil nessa herança – visto que muito de minha poética se insere nesse viés do poema como registro do movimento –, não tenho como não perturbá-la com as heranças pessoais, que tornaram relevantes para mim as poéticas dos pontos cantados e dançados nos terreiros de Umbanda, nos cortejos de Congado e nas ladainhas de um catolicismo popular e antropofágico.

USINA: Ainda no mesmo assunto: qual a importância do corpo na dimensão da experiência poética?

Edimilson: Considero a experiência da corporalidade – isto é, o entendimento do corpo para além de sua materialidade e de sua atualidade – como um fator decisivo para apreendermos criticamente nossas heranças culturais e, consequentemente, construirmos nossas opções estéticas. Dito de outra forma, se a corporalidade contesta as restrições do corpo como matéria atual e reconhecida, isso significa que outras perspectivas de significado para o corpo incluem a vivência do risco de outras corporalidades (a exemplo dos vínculos que podemos estabelecer com nossos ancestrais) fundadas na ausência e na atemporalidade. Esse risco, que nos impele à descoberta dos outros em nós, nutre também a dimensão da experiência poética. Ou seja, é por conta dos recursos que o risco nos oferece que podemos nos reinventar em corpos e linguagens outros, diferentes, mas não necessariamente dissociados do que somos e dizemos.

USINA: No título do livro “Águas de contendas” você já indica que o rio é turbulento, especialmente quando se trata de identidades. Em que termos falar de tradição afro-brasileira em um universo sincrético, antropofágico e conflituoso?

Edimilson: Quando considero o universo das tradições afro-brasileiras e suas relações com a cartografia das culturas brasileiras, penso em tais relações a partir de uma série de contendas que, ora se resolvem através de negociações, ora se revelam como aporias. Se as negociações, por um lado, nos permitem delinear as tradições afro-brasileiras é oportuno pensarmos a tradição conforme Honorat Aguessy, ou seja, não a partir de uma “ideia fixista” que se tem dela, já que ela “não poderia ser a repetição das mesmas sequências; não poderia traduzir um estado imóvel da cultura que se transmite de uma geração para outra. A atividade e a mudança estão na base do conceito de tradição.” As negociações que consideram a lógica da permanência e da mudança, que ressaltam o caráter dialético da tradição, nos permitem apreender as perdas e os ganhos, os logros e as parcerias que fazem da tensão o modus operandi das heranças de matriz africana na sociedade brasileira. Por conta disso, muitas de nossas práticas culturais são tão mais brasileiras quanto mais afrodescendentes e vice-versa. Um exemplo, a língua portuguesa tal como a falamos, assinalam, dentre outros estudiosos, Renato Mendonça e Yeda Pessoa de Castro, só é assim conformada em função dos intercâmbios entre o português e as línguas africanas, particularmente do grupo banto.

Por outro lado, as contendas que envolvem as demais instâncias político-culturais da sociedade brasileira com as tradições afro-brasileiras não têm sido resolvidas, ou melhor, têm se revelado como de difícil solução. Não podemos perder de vista um fato determinante de nossa história, qual seja, o fato de que o sistema sócio-político-econômico que considerou os negros africanos imprescindíveis foi o mesmo que os reificou, traficou e violentou. Foi esse sistema que os trouxe ao Brasil e ainda é, em grande medida, o sistema que não considera os descendentes dos africanos negros escravizados como integrantes do país. A aporia aí se desenha: nós, negros brasileiros, ainda somos sujeitos sem casa, homeless, em nossa própria terra. Prova de sermos considerados assim, apesar das conquistas alcançadas individual e coletivamente, ao longo das últimas décadas, sobretudo, é a escalada de violência perpetrada contra as populações afrodescendentes no país. Por isso, nossas águas ainda são de contendas, e sua pacificação não é tarefa exclusiva dos afrodescendentes. Enfatizo, fazendo coro a outras vozes, que não há como pensar um Brasil socialmente equilibrado enquanto insistirmos em práticas de exclusão imaginadas como mecanismos de defesa de determinados grupos sociais. Nas tramas sociais brasileiras é urgente realçar os fios que podem nos unir, ao contrário do que temos feito, a ponto de vermos, há tanto tempo, agarrados, para não sucumbirmos, aos fios do medo e da intolerância.

USINA: “Les hommes-bêtes (notas para um etnógrafo)” descreve uma série de ritos e pode ser lido como a relação entre o poeta e a feitura do poema. De que maneira antropologia e poesia podem se cruzar, a partir principalmente de sua ideia de que “poesia é linguagem em estado de tensão”?

Edimilson: Este poema consiste numa tentativa de mapear o terreno de escarpas e planícies onde o poeta elabora a sua linguagem. Não é um poema-síntese dessa relação sujeito-paisagem; ao contrário, é um poema em forma de descrição, que se pretende densa, de uma vivência estética que se realiza à medida em que interroga os seus próprios métodos e resultados. Por isso, os ritos de nascimento, iniciação, fertilidade, puberdade e morte evocados pelo poema representam as diferentes etapas de criação de um texto, cada qual marcada pela revelação de agentes (o autor e o público, em particular) que, ora garantem o sentido do texto, ora contestam a sua estrutura. Em função disso, a linguagem que faz a mediação entre o texto, o autor e o público não é, a meu ver, uma linguagem de acomodação, mas, sim, uma linguagem forjada para apreender significados, na maioria das vezes, dissonantes entre si.

O que aspiram, enfim, o texto, o autor e o público? As respostas a essa indagação nem sempre desvendam, numa sintonia fina, a identidade de desejos expressos pelo texto, o autor e o público. Há sempre uma fissura, que se alarga, mais ou menos, de acordo com as circunstâncias, a demonstrar que o ponto de interseção entre os desejos dos agentes mencionados se afirma como uma aresta e menos como uma curva de acolhimento. Emerge daí a linguagem poética em estado de tensão porque, uma vez eleita como um instrumento de revelação, ela mesma nos impele a reconhecê-la como um meio, dentre outros, de apreensão das coisas, do mundo e das ações que praticamos.

Essa linguagem poética, ferida e precária, me faz pensar na função que Clifford Geertz atribuiu à antropologia interpretativa, ou seja, “a de constantemente reensinar essa verdade fugaz […]a de ver-nos, entre outros, como apenas mais um exemplo da forma que a vida humana adotou em um determinado lugar, um caso entre casos, um mundo entre mundos.” Assim como um discurso antropológico que nos permite pensar que somos fundamentais à medida em que não somos uma exceção, mas que somos singulares entre outras singularidades, igualmente significativas, considero relevante a linguagem poética que se exprime como algo fundamental à vida em sociedade justamente porque alinhavada num tecido de outras linguagens, também grávidas de sentidos. De volta ao poema “Les hommes-bêtes” (que não é um manual de conduta poética, mas apenas uma série de “notas para um etnógrafo”), reitero uma opção pessoal que interpreta o fazer poético como um fazer entre outros fazeres de nossa vida social, nem mais-nem menos luminoso; e que, por ser um fazer entre outros, nutre-se do diálogo com os agentes desses fazeres para continuar existindo.

LES HOMMES-BÊTES

USINA: O mundo iorubá-nagô é uma fonte de inspiração para sua poética. Pensando o lugar dos orixás na sua obra, você poderia nos contar como faz para controlar Exu, uma figura conhecida por ser maleável, polivalente e mediadora, em forma textual?

Edimilson: Por ser maleável, polivalente e mediador, dentre outros atributos, Exu não se permite ser controlado. É através desses atributos que Exu me ensina outras inflexões para a vivência poética. Aprender com Exu é não restringir a experiência de construção de sentido a esta ou àquela possibilidade, mas a muitas possibilidades, inclusive àquelas que o sonar de nossa linguagem ainda não detectou. Exu é, simultaneamente, o que está feito e o devir de todos os fazeres. Por isso, ciente de sua dinâmica, esforço-me para apreender o que há de significativo nas poéticas consagradas e o que sequer imaginamos ser uma poética em potencial. Em termos de intepretação do discurso, rascunho, no momento, um artigo no qual me refiro a um Orphe(x)u para representar uma experiência poética já decifrada e a um Exu nouveau para rastrear o que há de enigmático no domínio estético e que nos exige uma expansão de linguagem para representá-lo. É, portanto, entre o Exu-dádiva e o Exu-exigência que interrogo mais do que afirmo o fazer poético, como prenuncia um dos poemas do Livro de falas, que editei em 1987:

“…Quando o mundo começou, da lama e das águas primordiais surgiu
um montículo de laterita vermelha. O sopro de Olorum conferiu-lhe
a vida. Exu se manifesta em tudo aquilo que vem em primeiro lugar…”
(Monique Augras)

VISITAÇÃO

USINA: É possível perceber, cada vez mais, um processo de resistência ao ideal de Modernidade – principalmente no que diz respeito à sua forma de racionalidade e de vida. A isso, podemos chamar de reencantamento do mundo, quando as diferentes formas de saberes (principalmente os considerados sagrados) nos lembram do papel crucial e definitivo que eles possuem em nossa relação com o mundo. Frente a isso, o que é a poesia nesse panorama?

Edimilson: A questão do reencantamento do mundo (ou, em termos dramáticos, a questão da revanche do sagrado), no meu entendimento, é relevante para o sujeito do fazer poético. É evidente que cada poeta, à sua maneira e pelas suas razões, e a depender de seu contexto histórico-social, pode considerar mais ou menos a interferência dessa questão em seu processo de criação. De modo específico, para quem considera a experiência poética como uma força fundante do humano essa questão se impõe, haja vista a estreita relação que há muito se estabeleceu entre o sagrado e o discurso poético. Uma interessante amostragem dessa relação é a coletânea “Trésor de la poésie universelle”, organizada por Roger Caillois e Jean-Clarence Lambert. Além de um prefácio escrito por Caillois (segundo o qual “Aux origines, autant qu’on en puisse juger, la poesie, plutôt qu’un langage sacré, constituait un langage general.”), a obra reúne cantos rituais, preces, litanias, profecias, mitos, hinos e salmos apresentados sob a estrutura de textos poéticos. Um exemplo dessa textualidade litúrgico-poética é a “Invocação à chuva”, cujos sons eram entoados com o acompanhamento dos choques entre os bumerangues, na Austrália:

Dad a da da             Ded o ded o
Dad a da da             Ded o ded o
Dad a da da             Ded o ded o
Da kata kai.             Da kata kai.

A referência à poesia como força instituinte do sujeito e do mundo é para salientar o fato de que a crise da modernidade (que implica, em parte, a crítica ao triunfo da razão científica sobre o pensamento simbólico; à submissão de nosso habitat ao homo faber; ao fim da ilusão da transcendência em prol do homem que se enraizou num presente de bem-estar material; e ao cientificismo como forma privilegiada de explicação dos fenômenos e do modus vivendi do ser humano e do seu ambiente) não resulta, necessariamente, no ostracismo do maravilhoso e do inefável como categorias para percebemos o mundo, o outro e a nós mesmos.

Uma certa modalidade de linguagem poética, que se articula sob essa perspectiva, não inviabiliza outras formas do discurso poético, inclusive aquelas que fixaram como experiência racional, antilírica; como experiência escrita ou como experiência do indivíduo, apartada, portanto, da cena coletiva. Essa linguagem poética – imantada pelo furor da origem, que não se viabiliza como discurso de uma religião, embora percorra os labirintos do sagrado – contribui, a meu ver, para a atualização contínua da experiência poética. Isto ocorre porque essa linguagem, aparentemente inacessível é, no fundo, parte integrante de nossas vivências cotidianas. Ela está no tecido das ações que praticamos e dos discursos que emitimos. Quando insistimos no seu exílio, no seu fracasso, na sua dispersão estamos, por vias não explícitas, confirmando o seu vigor, uma vez que somos, como indivíduos e como coletividades, um mosaico dessas condições. E, mesmo devorados por elas, sobrevivemos.

É, portanto, dessa civilização rota, dessa individualidade claudicante que se nutre essa poética instituinte: vejamos isso no obituário da poesia, escrito e reescrito, em diferentes épocas, e hoje mais do que nunca, através de argumentos como “poesia não vende”, “os leitores de poesia são os próprios poetas”, “o mercado valoriza mais a prosa”. A poesia instituinte devora sua morte, e com ela geramos metáforas imponderáveis, expomos as fraturas dos enunciados, redimimos a linguagem que ruboriza diante daquilo que não pode ser dito. Essa também é a poesia, ou melhor, uma certa experiência da poesia, que não ergue a cabeça acima de seus pares, porque, sem que estes percebam, ela é a flor-motor de seus corpos e ambientes.

USINA: Aproveitando ainda a pergunta anterior: no âmbito da poesia, como você encara de forma mais ampla a teoria e produção textual quando o que está em jogo é a linguagem sagrada – em que as palavras são uma ponte de ligação direta com os deuses?

Edimilson: Por um lado, as experiências que vivi junto a comunidades devocionais me mostraram que a função ritual da linguagem sagrada está intimamente ligada às prescrições que regem a sua articulação estética. Ou seja, para que um cantopoema do Congado seja considerado bem sucedido, ele deve atender a uma lógica formal e rítmica que, por sua vez, é ajustada para expressar uma gama de informações específicas. O cantopoeta precisa ter domínio sobre esses aspectos a fim de garantir a eficácia da linguagem sagrada. Essa adequação pode ser vista, por exemplo, durante uma caminhada, quando o cantopoeta do terno de Moçambique opta por entoar uma loa. Esta modalidade poética é caracterizada por um ritmo lento e demorado, que viabiliza a recuperação do histórico familiar e das ações rituais de uma certa comunidade. Porém, durante o encontro entre dois ou mais ternos, o cantopoeta se esmera nos cantopoemas curtos e rápidos que, tirados sob a forma de desafio, evidenciam um momento de tensão. Nesses momentos, tanto se pode reforçar os laços de solidariedade quanto explicitar as fissuras e contendas entre os grupos devocionais.

De certa maneira, estes e outros procedimentos atuam como prescrições para a composição e a aplicação do cantopoema, de modo a ressaltar o caráter sistematizado da poética do Congado. Por outro lado, quando consideramos os modelos de teoria e produção textual da literatura canônica, notamos a carência de abordagens que contemplam a performance em linguagem sagrada, inserida num contexto ritual, como modalidade literária. Em geral, a teoria literária ainda exclui as modalidades literárias que se realizam fora do domínio da escrita e de um paideuma que, de tempos em tempos, acolhe uma ou outra obra sem, no entanto, desconfigurar as suas fronteiras. Diante disso, a abordagem da linguagem sagrada, no âmbito das comunidades devocionais, nos permite, até o momento, considerar três níveis de percepção para essa poética:

a) o sentido antropológico que demonstra como a tríade linguagem sagrada / linguagem corporal/ linguagem do espaço ritual configura o caráter utilitário de uma poética apta a funcionar como um instrumento para se construir e manter as pontes de ligação entre a imanência e a transcendência.1

b) o sentido poético / 1 que enfatiza a fatura da linguagem sagrada levada a cabo pelo devoto que, durante o ritual, se apresenta como o criador de uma experiência ética e estética específica.2

c) o sentido poético / 2 que evidencia a recriação da linguagem sagrada por um sujeito que conhece a comunidade de devotos, relaciona-se com ela, embora tenha como lugar de fatura de sua poética um outro lugar, situado fora da comunidade.3

CANTOPOEMAS4

Os textos orais, criados pelos devotos do Congado, nos quais a letra e a melodia são elementos de destaque, podem ser chamados de cantopoemas. Assim como as narrativas de preceito, acompanham as celebrações das comunidadese contribuem para a fundação de uma ordem social baseada no respeito ao sagrado e aos ancestrais. Veja-se um cantopoema colhido na voz do Sr. Geraldo Arthur Camilo, da comunidade dos Arturos, em Contagem, Minas Gerais.

Esse povo tudo é fio                                                    Coro
É fio de Nossa Senhora do Rosaro                            Ôoo
As minha coroa
Os meu bastão
É da minha mãe do rosaro                                        Uê uê uê

As minha gunga
Meus patangome
Minhas espadas                                                          Oôô

Meus irmão
Minha famia
Meu povo tudo                                                           Uê uê uê

Nada num é meu
Minha povo

Nada num é meu
Tudo é de papai
Tudo é de mamãe

Viva mamãe do Rosaro
Dona do congá
Oi, vamo embelezá

Oi, vamo embelezá, meus irmão
Vamo embelezá

USINA: Você já disse que sua poesia vive de uma tensão “enraizerrante”. Nesse sentido, você poderia nos contar mais sobre a relação entre a poética “extra-ocidental” dos Oriki, e a reinvenção desta tradição levando em conta a História da literatura?

Edimilson: Como é possível notar, a relação da linguagem sagrada com a teoria literária ocorre num terreno em que a atração e a recusa, manifestadas por ambas as partes, propiciam a eclosão desse fato que chamamos de tensão “enraizerrante”. Dessa tensão, podemos apreender certos aspectos da experiência poética como um fenômeno de diluição que se concretiza momentaneamente no verbo, no som, na imagem ou no corpo. Ao mesmo tempo, esse fenômeno de concretização se dilui no verbo, no som, na imagem ou no corpo que apenas tangenciam os sentidos passíveis de serem atribuídos ao mundo. Esse dilema do processo de criação é uma outra maneira de ressaltarmos a tensão “enraizerrante”, que confere à experiência poética a possibilidade de dizer-nos que aquilo que nos fixa no tempo e no espaço, na vida pessoal e coletiva só o faz porque se move e se transfigura continuamente.

No que se refere à tradição dos orikis, ressalto a sua aderência à tensão “enraizerrante” que, em outros termos, pode ser traduzida pela maneira como Chinua Achebe apreende o conceito de tradição. Segundo o escritor nigeriano, “devemos falar da tradição não como uma necessidade absoluta e inalterável, mas como uma metade de uma dialética em evolução – sendo a outra parte o imperativo da mudança.” É através do jogo desenhado pela permanência e pela mudança e/ou pelo enraizamento e a errância que o oriki se firma como uma poética de manutenção de valores e, simultaneamente, como uma poética renovadora de valores. Daí, a pertinência da análise elaborada pelo poeta e antropólogo Antonio Risério sobre os orikis, mostrando-nos, dentre outras possibilidades, que o oriki é “uma poética capaz de alimentar de algum modo a produção contemporânea” não se restringindo, portanto, a “uma relíquia salva de um escombro”.

A partir da lente da tensão “enraizerrante”, acredito que outras poéticas relegadas pelo cânone literário brasileiro podem, à maneira dos orikis, nutrir a experiência poética contemporânea. Refiro-me à poética dos cantopoemas (no Congado), dos vissungos (cantos de trabalho na mineração), das loas de jongo e dos pontos da Umbanda. Trata-se de poéticas que, sem afastar-se da práxis ritual, insuflam no sujeito da criação poética, fora do ambiente ritual, o desejo pela redescoberta do sentido onde ele, aparentemente, se mostra inatingível.

USINA: Como acadêmico e poeta, você considera a formação de um cânone literário importante?

Edimilson: Pensemos essa questão em duas etapas que se inter-relacionam, com frequência: a da legitimação estética que o status canônico confere a uma obra literária e a da criação-em-liberdade que devolve à obra literária a sua autonomia. Inicialmente, nossa entrada nas esferas da vida acadêmica e da vida literária coincide com a constatação de que um cânone literário é um fato incontornável, tal a força que exerce sobre o nosso modo de pensar, sobre as estruturas curriculares e sobre as linhas de publicação das editoras. Diante desse cenário, parece impossível pensar o processo criativo e a reflexão crítica fora de determinados paradigmas. Visto dessa maneira, o cânone se impõe como um mecanismo que sintetiza as vertentes de criação, orienta os procedimentos de interpretação e estabelece modelos de identidade cultural. Fixados em nome de uma visão restrita do conceito de tradição, esses aspectos, por um lado, desenham molduras sociais favoráveis à emergência de sujeitos e comunidades que se conformam a um certo esquema de identidade; por outro lado, tais aspectos engessam as intempéries que fertilizam a experiência criativa.

No entanto, essa dicotomia não é suficiente para apreender a complexidade do cânone. Se, uma vez conformado, o cânone exclui de si as modalidades literárias que não se ajustam aos seus aspectos fundadores, não deixa de ser provocativa a situação de certas modalidades literárias excluídas que procuram conformar-se, também, como um outro cânone. A esse propósito, pensemos no abalo que um cânone como o da literatura ocidental sofre em decorrência das propostas de síntese, orientação e estabelecimento de modelos que os cânones das literaturas silenciadas (a exemplo das literaturas afro-brasileira e indígena) realizam na cena literária, valorizando a relativização das noções de autoria, linguagem e recepção das obras.

É oportuno salientar que um cânone articulado como resposta a séculos de exclusão pode obter um alto grau de rendimento estético e político se for esboçado, propositalmente, como um cânone de ruptura, no qual os princípios de síntese, orientação e estabelecimento de modelos sejam articulados para realçar a diversidade de matrizes culturais. Vale levar em conta, para esse cânone, o fato de que ele é uma dentre outras práticas culturais que organizamos em sociedade e, assim como essas outras práticas, a sua base informacional é dinâmica, podendo ser transformada ou mantida para decodificar as novas situações que se nos apresentam. Por isso, esse cânone de ruptura se expõe como um fazer e refazer contínuos, interagindo com demandas estéticas, políticas e sociais que não estejam em acordo com aquelas impostas por grupos sociais dominantes. A partir disso, e considerando a dramática situação das literaturas e sujeitos silenciados, considero relevante a explicitação de sistemas literários, desde que não naufraguem nas águas do exclusivismo mas que, ao contrário, façam e refaçam continuamente as suas próprias bases. Esse procedimento viabiliza a apreensão das muitas possibilidades da criação literária.

Um exemplo dessa perspectiva, que se abre ao debate porque aposta nele para tornar-se visível, é o tecido da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira. Num arco temporal que vai do século XVII (vide as cartas de Henrique Dias) até a contemporaneidade (vide as obras de criação literária e ensaística de autoras e autores afrodescendentes), incluindo o repertório poético e ficcional condensado no âmbito das literaturas orais, notamos que a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira tem sido delineada a partir dos princípios da síntese, orientação e estabelecimento de modelos que fundamentam o cânone literário ocidental. O conjunto de autores, obras e público que esboça o sentido canônico para esse conjunto literário nos mostra muito do que é ser afrodescendente numa sociedade que nos impôs a negação de nós mesmos.

Se esse conjunto ameaça, às vezes, deslizar para o exclusivismo de uma identidade étnica e esteticamente fechada (e essa hipótese atravessa quaisquer sistemas ou cânones), simultaneamente ele expõe as fraturas do cânone literário ocidental e nos impele a considerar os conflitos que presidem a afirmação e a dispersão das identidades. Além disso, a experiência da diáspora africana nos chama a atenção para um cenário dinâmico, no qual a reorganização social do sujeito afrodescendente, incluindo-se aqui as suas práticas literárias, é tensionada por diferentes modulações de tempo, espaço, gênero e classe social. Teóricos de várias áreas como Eduardo de Assis Duarte, Maria Nazareth Soares Fonseca, Leda Maria Martins, Moema Parente Augel, Ronald Walter, Édouard Glissant, Patrick Chamoiseau e Paul Gilroy, dentre outros, têm mapeado o dilema da “dupla consciência” do afrodescendente. Ou seja, um dilema que o desafia a sentir-se sujeito numa sociedade que o reificou e a pensar em sua identificação com uma cultura de origem. Porém, esse dilema é intensificado quando o sujeito percebe que, sob vários aspectos, a sua cultura de origem se rearticulou ao longo do tempo, resultando em complexos jogos de interações e rupturas culturais. Não por acaso, o traço da ruptura tem sido apontado como uma das características da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, já que ela contesta o cânone literário brasileiro por se apresentar como o modelo de um outro campo epistemológico.

Todavia, há que se considerar a criação-em-liberdade como uma prerrogativa que faz de certas obras um cometa a desarticular quaisquer modalidades de cânone. Essas obras, por sua radicalidade de forma e sentido, não se enquadram nos princípios que regem os sistemas literários mais fechados ou mais interativos.Uma obra como a de Stela do Patrocínio, por exemplo, rasura tanto os princípios do cânone literário brasileiro quanto os da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira. Isso ocorre por conta do modo como essa obra foi transcriada a partir da relação entre Stela do Patrocínio e as mediadoras sociais que a contactaram.

Dentre as especificidades dessa poética-em-diálogo pode-se destacar a utilização de um registro sintático-semântico que questiona os paradigmas da norma culta e a explicitação de uma visão de mundo que relativiza as dimensões daquilo que consideramos como realidade do sujeito. Algo similar pode ser dito a respeito das poéticas orais dos cantopoemas de procedência banto-católica ou dos orikis configurados na fronteira entre a prática ritual e a experimentação estética, aspectos que acentuam, muitas vezes, o caráter restrito do cânone literário. O rastro dessas outras poéticas é indelével, embora, acredito, muito de sua fulguração ainda esteja à espera de nosso entendimento. Um gesto na direção do encontro com essas poéticas fulgurantes poderia ser a sua inclusão nos programas de nossos cursos de literatura. Mais do que um contato obrigatório com elas, essa inserção possibilitaria a criação de um demorado tempo de convivência, condição necessária para a realização de pesquisas teóricas sobre elas e, sobretudo, para o conhecimento dos horizontes culturais que as tornaram possíveis.



NOTAS:

1. Dentre as muitas obras que registram esse sentido, podemos citar Os nagô e a morte. Pade, Asèsè e o culto Egun na Bahia (Juana Elbein dos Santos, Petrópolis, Vozes, 1976); Cantos sagrados do Xangô do Recife (José Jorge de Carvalho, Brasília: Fundação Cultural Palmares, 1993; Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá (Leda Maria Martins, São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997); Negras raízes mineiras: os Arturos (Núbia P. M. Gomes e Edimilson de A. Pereira, 2ª ed., Belo Horizonte, Mazza Edições, 2000);

2. Tal perspectiva perpassa obras como Canti degli aborigeni australiani (Graziella Englaro, Milano, Mondadori, 1999); Des hommes et des bêtes: chants de chasseurs mandingues (Jean Derive et Gérard Dumestre,Paris, Association Classiques Africaines, 2000); Textos e tribos: poéticas extra ocidentais nos trópicos brasileiros (Antonio Risério Rio de Janeiro: Imago, 1993); A saliva da fala: notas sobre a poética banto-católica no Brasil (Edimilson de A. Pereira, no prelo); Cantos e histórias do gavião-espírito e Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex (organização de Rosângela Pereira de Tugny, Rio de Janeiro, Azougue, 2009);

3. Essa vertente pode ser observada em coletâneas como Orixás (Oliveira Silveira, Porto Alegre, Unidade Editorial, s/d), Livro de falas (Edimilson de A. Pereira, 3ª ed., Juiz de Fora,Funalfa; Belo Horizonte, Mazza, 2008); Aroda do mundo (Ricardo Aleixo e Edimilson de A. Pereira, Belo Horizonte,Mazza Edições, 1996); Ondula, savana branca (Ruy Duarte de Carvalho, In: Lavra– poesia reunida 1970/2000, Lisboa, Cotovia, 2005), Roça barroca (Josely Vianna Baptista, São Paulo, Cosac Naify,2011); Orikis (Cláudio Daniel, São Paulo, Patuá, 2015).

4. Malungos na escola, Edimilson de Almeida Pereira (São Paulo: Paulinas, 2007)

Bibliografia citada na entrevista:

  • Graziela Fonseca no livro Bailarino-pesquisador-intérprete: processo de formação (Rio de Janeiro: Funarte, 1997)
  • Mendonça (A influência africana no português do Brasil. 4. ed.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973)
  • Yeda Pessoa de Castro (“A língua portuguesa que falamos é culturalmente negra”, In: Revista de História, Rio de Janeiro, maio de 2015)
  • Homeless, Edimilson de Almeida Pereira (Belo Horizonte: Mazza, 2010)
  • Trésor dela poésie universelle, org. Roger Caillois e Jean-Clarence Lambert (Paris, Gallimard, 4º. Edition, 1958)
  • Stela do Patrocínio (Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, organização de Viviane Mosé, Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2001)
  • Willfried F. Feuser, (Entre a tradição e a modernidade: impressões sobre a literatura nigeriana. 2ª parte – A literatura nigeriana em inglês.” In: África: literatura, arte, cultura. Lisboa, v. 1, n. 3, ano 1, jan-mar, 1979, p. 248).
  • (Oriki orixá, São Paulo, Perspectiva, 1996, p. 19)
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