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Performar a Resiliência

agosto, 2015

Foto de Vitor Faria

Diário de campo expandido
Documento 3#

Resiliência é a capacidade de um material acumular uma grande capacidade de energia, ao ponto de sofrer uma grande deformação estrutural e posteriormente conseguir aos poucos retornar ao seu estado original. Se deslocarmos isso para a economia política, podemos evidenciar a capacidade elástica do capitalismo em produzir sua própria transmutação, o que sistemicamente coloca todo o corpo social em fases de revolução física, psíquica e cultural. Não existe qualquer novidade na capacidade resiliente como método de superação de crises, isso é aplicado constantemente na renovação de metodologias econômicas e lançamento de novas indústrias, políticas de trabalho diferenciado e entrada de novos empreendimentos que souberam lucrar com a crise. Mas não trataremos neste documento sobre uma simples empresa ou instituição em crise, consideremos a cidade em crise, a cidade-empresa.

Se pensarmos nas novas políticas criadas para os conceitos de urbanidade, como um processo de recondicionamento da conduta da pessoa, a noção de pessoa aqui ganha ares de um corpo livre, com capacidades infinitas, pois cada pessoa é importante para o grande desenvolvimento do urbano. Cada pessoa se torna produtor de si. A cidade-empresa te oferece todo tipo de diversão e movimentação, contanto que você entre na grande plataforma. Essa plataforma que funciona quase que como um game em que o sujeito se sente empoderado da construção do urbano, facilmente nos tornando exploradores alienados de nós mesmos. As palavras atuação, intervenção, performance, entre outras do novo vocabulário urbanoide, servem para que se tenha um melhor desempenho de ser você mesmo, parte da construção cínica de uma Economia dos Afetos, logo voltaremos a este assunto.

Com a grande política de escassez que se espalha através dos processos globalizados (uma vez que a única atividade que se globalizou foi a exploração de recursos naturais), estamos próximos do novo modelo de exploração, da potencialidade do corpo humano. Numa cidade empresa, o corpo humano é a principal matéria-prima do desenvolvimento econômico por absorção, ou seja a criatividade é o grande mote do jogo estrutural do capitalismo, devido à capacidade resiliente estar fortemente ligada à capacidade criativa de resolver problemas do sistema. Nesse ponto entra o personagem ao qual tenho maior interesse: o artista.

A noção de nos tornarmos todos artistas e evocar constantemente a subjetividade para o centro de nossas ações diárias coloca o sistema social vigente constantemente em movimentação revolucionária, as crises cada vez mais presentes são resultado de posturas geracionais das forças de trabalho. Logo a resiliência torna-se um exercício constante daqueles que vivem na cidade-empresa. A cada passo que você dá na cidade, cada sonho que você despeja numa esquina, a independência libertária falseada pelo prazer da vigilância, seus afetos, seus amigos, seus deuses, a equação não linear que só resulta no vazio arruinado da modernidade, o seu amor, o seu inimigo, o seu corpo. O sistema hoje é capaz de absorver qualquer coisa, pois se tornou a própria maleabilidade. Ultrapassamos a biopolítica, somos um Zoopolitikon, estamos no cativeiro da potência.

A arte é uma instituição e, como tal, tem seus parâmetros de funcionamento no sistema, que na situação contemporânea se torna uma rede rizomática que vai além dos objetos ou do espaço, caminha para a corrente sanguínea, os órgãos, se torna cada vez mais um sentimento de existir no mundo. A nova roupagem do mercado é facilitar a vida do criativo lhe dando um capitalismo com emoção estética, próximo a um afeto individual.

Aqui podemos nos colocar diante da Economia dos Afetos, onde todo o nosso material de produção subjetiva torna-se uma forma de troca mercantil. O dedilhamento suave na máquina, o celular que em breve dirá que te ama e o amará melhor que o humano. Aplicativos para dar vazão ao um eu sobrecarregado de desejo. O afeto não é algo da natureza, está relacionado a efeitos acionados pelo contato com o outro, as maiores afetações históricas estão sempre num posicionamento de extermínio da alteridade. Afetar o outro sempre esteve ligado ao domínio fetichista de um corpo que produz outras formas de linguagem, no intuito de legitimar uma única linguagem. Baseados numa cultural católica que considera sempre o uno, ou o Deus de Tudo, como não haveria a tentativa de criar uma única linguagem? A arbitrariedade colonial, escravocrata, exploratória, alienígena, não considera o outro como uma possibilidade em paralelo, mas como uma competição. Na Economia dos Afetos, o outro torna-se um abstrato decodificado em imagem telemática, facilmente modelado por gadgets. Assim como na colonização dos povos, a arte é o grande feitiço ocidental para apaixonar-se pelo outro, sendo o amor uma instituição burguesa muito posterior, o material da arte serviu para a dominação suave dos povos. As culturas fora dos parâmetros ocidentais não poderiam ter feito arte, pois não tinham instituições complexas para tal, não haviam construído qualquer instrumento de inflação do ego. Para de fato criarmos uma conexão com o outro é preciso dar fim a linguagem, ou matar Deus.

O fascínio do objeto criado, seja a obra de arte ou o celular inteligente, deverá dar lugar a uma ação empreendida em um determinado tempo. Diluir o objeto até que ele se torne gasoso e atravesse o espaço e os corpos, entranhem em cada partícula da existência. A arte transcendental que caminha para a cosmogonia de outros deuses. A permeação.

Em contraposição às condições resilientes da cidade-empresa, que quando entra em crise os corpos agonizam e se debatem como um organismo tentando se recuperar, o invasor deverá provar ao sistema a resistência de coisas tão frágeis que parecem impossíveis de perdurarem depois da agonia da crise. Como o atleta que usa um bastão para saltar sobre a trave. A trave jamais será eliminada pelo corpo, que é frágil, mas poderá ser superada com a capacidade de energia deslocada com o uso do bastão. O bastão é a arte e a trave a plataforma.

Os objetos criados num determinado espaço, só servem como ferramentas para uma dissidência pronta para provar sua resiliência. O espaço e os objetos já não mais importam, pois são facilmente cumulativos, o corpo do artista em resiliência necessita de um nomadismo. Não acumular nada que possa se tornar pesado na sua sacola. É preciso deixar o amor, as paixões, os afetos se acumularem dentro de si e estrategicamente despejá-los numa dada situação criada, num determinado período de tempo e sem seguida desertar do espaço. Não dar qualquer chance de o espaço se tornar um especulativo de sua existência, para assim brigar com a esponja da cidade-empresa. Nem norte, nem sul, nem leste, nem oeste, a rosa dos ventos em paralaxe.

Um artista nômade ritualiza seus vestígios e encontra, na face do outro, o instante pequenino do fulgor da existência. Sua prática de permeação o prepara para que vá criando métodos de se tornar o outro, pois todos os seus processos só existem enquanto o outro existir, a potência artística do ritual dos gestos irá encontrar sua morada no outro, tão afetado que partirá com as marcas imemoriais da alteridade. Como numa dança, o nômade vai criando sua rede de afeto livre, sendo causa(dor) ou provoca(dor) de situações amortecidas no meio social, fazendo o tratamento da evidência, produzir a evidência.

 

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