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Variações sobre o Matriarcado

julho, 2018

Quero, com as linhas seguintes, atar num tecido só, uma série de retalhos. Descrições, que são tão óbvias, mas nunca alinhadas para que mostrem, enfim, a figura que parecem indicar.

Esse eco de forma, que eu escuto, na tonalidade de cada fragmento – sempre incompleto – esse ressoar oculto, a que me falta saber dar a afinação, a cadência, o ponto de início, que os porá em conjunto, peças que são, de um grande hieroglifo…

Forjaria assim, eu, a chave, que desataria nosso pensamento? Mais bem o contrário: uma grande costura, que tão-só manteria unas as nossas ideias. Redescoberta, reinvenção do elo, da liga, nesse cenário de palavras abertas, nessa desconstrução da língua instaurada.

Vejam a hesitação que assumo, aqui, no umbral de entrada; em que receio invocar, tão cedo, já a cena que me põe a pensar – e que eu adio, com medo dela de novo me silenciar.

Forro então, pouco a pouco, este início com palavras, com um tom: e me apeteceria saber mantê-lo – esse fio, essa nota de clareza comum desde o umbral de entrada na escritura, cenário adentro.

*

Uma criança adentra, pé ante pé, o quarto onde sua mãe está a dar à luz; em meio à surdez dos gemidos, à cor berrante e o sangue, ela percebe, quiçá como primeira vez, que possui um umbigo.

(Seria o caminho que me proponho, como o rever de um vaso espatifado, a reunir os cacos e montá-los, atrás duma ordem que se perdeu?)

Pois a criança refaz, mentalmente, da cicatriz em seu ventre, o cordão carnal, que um dia a ligou à carne duma primeira mulher, e a encheu daquele sangue que ora se multiplica em suas veias.

Aos olhos da mãe, sai-lhe do útero esse cordão que se rompe, rebento da carne… Quiçá então ela veja também seu próprio umbigo, e o cordão que ali nascia, e o rebento que ela também foi um dia. Mas agora é do seu útero que vem a prole, o inchaço, o pausar da menstruação – bem onde antes tocou algo, dos testículos dum terceiro: e ela refaz a ligação: da criança, pelo cordão, ao ponto onde aquilo tocou.

Mas daí quando à terra úmida, à vala negra, cavada, o homem deposita a semente – vamos dizer, do trigo – não se misturam essas imagens na mente do pai que fecunda, na noite, a mulher fértil? Homem, portador do sêmen, essa semente que só se abre na terra dela: imagem de povos semeadores, agricultores de grãos; sedentários, colando na concepção da natureza provedora a sua própria concepção filiadora.

Vejam essa visão paterna, abismada da germinação dos seus testículos na vulva fértil, como um espelho da lavoura do grão – vejam esse espelho se espalhar na concepção do tudo. Primado da semente, portadora da vida, só aguardando o alimento, a matéria que lhe permita expandir sua forma. A matéria: seja a mãe, do útero às mamas, seja o pão que o pai retira à natureza pelas mãos. Primado da semente…

Mas enquanto essa imagem se expande, e toma conta do mundo, do universo, fica para trás a descoberta primeira: da criança e seu umbigo, do cordão ligado à mãe. O umbigo, que todos possuem: inclusive a mãe, inclusive o pai. O umbigo é a unidade, o um. Cordão umbilical, que nos liga a todos como partes da mãe.

*

Devemos lembrar. Se sou homem, e transo com dez mulheres, posso ter dez filhos de uma vez; se sou mulher, e transo com dez, ou com cem homens, só tenho um filho por vez.

Fraca igualdade de papéis na criação. O pai é um dispersor de “sementes” que nada são sem as usinas venéreas que completam o sêmen e o enchem do sangue que dá vida. A mulher é uma abundância latente, e a dita semente não passa da chave, do gatilho que dispara os trabalhos de gestação. Entre as ramificações da maternidade, na grande árvore das proles ligadas por cordões umbilicais aos úteros de suas mães, a grande matrilinearidade da matéria em sua filiação de sangue – os homens são ramos estéreis, sem útero, portadores apenas dum mínimo pólen que dispara nelas os novos cordões maternais.

Precisamos rever esta grande árvore, que fica oculta sob a polinização masculina. Travamos nessa filosofia única e segmentada, do elemento externo, ordenador, que se insere numa matéria sem iniciativa; não sabemos mais ver esse elemento como parte da própria matéria.

*

Que descoberta eu desejo invocar? Pois se é a filiação paterna o modelo matriz de toda nossa simbologia do mundo, formando um desenho bem acabado, coerente; nós não a invocamos mais, horrorizados de seu significado patriarcal.

Eis o desenho, latente, que ao tentarmos pensar nos enoja, e que por isso nos afasta de toda especulação sobre a base reprodutiva do pensamento: se a mulher está presa a urgências e fragilidades da reprodução física menstruando, engravidando e aleitando; à mercê de ciclos terrenos, telúricos, instáveis; o homem aparece como uma constância sem ciclos, livre para se espiritualizar e cultivar as altas formas da cultura. Afastando-se do hemisfério do nascimento, da produção matrimonial, funda-se uma cultura cultivando o imaterial superior. Afastada do natural, essa dualidade se reproduz: a pura forma racional sobre a matéria perecível, a perfeição do projeto abstrato ante os ruídos e entraves de sua aplicação; cultura do desenraizamento, da criação imaterial que renega sua matriz terrena e bane o útero.

Mas se essa filosofia subjaz como um modelo que costura as variadas dualidades do universo que nos cerca, nós tanto a recusamos como a esquecemos, vivendo a desconexão de seus retalhos. Recusamos esse antropomorfismo, de ver a filiação humana como eixo de todas as dualidades, definidas a partir de linhagens paternas. Recusamos a unidade que esse paganismo propõe, como uma filosofia primitiva.

Mas talvez – e é por isso que escrevo – sem enxergar a coerência brutal dessas partes, situando o antropomorfismo que as funda, nunca poderemos recusá-las em sua inteireza. Se não largarmos o triunfalismo moderno e assumirmos que jamais deixamos o paganismo primitivo; se não voltarmos antes de qualquer oposição a essa dualidade íntima e essencial, que nos serve de modelo carnal; se não invocarmos aí o lado esquecido – a árvore de sangue, a matrilinearidade da matéria – nossa resposta será sempre parcial, um retalho sem coerência a mais, e sem responder propriamente aos enigmas fundamentais da criação.

Realmente, se busco aqui, cuidadosamente, retraçar a grande unidade da filosofia patriárquica – da paternidade como princípio (arcaica) e como príncipe (monárquica) – como meio de costurar cada retalho nos demais, é sempre invocando e aproximando as saídas matrilineares que se apresentam, buscando aprender na sua justaposição, apostando que assim revelarão uma coesão mais profunda, perdida para nós mas latente, aguardando, e que não obedece à binaridade patriárquica, mas a engloba como parte de um todo.

Este texto é em si mesmo um esforço de fazer o hemisfério outro vir à tona, a matrilinearidade da matéria enquanto matriz. Mapear a coerência da filosofia semeadora que herdamos em seus retalhos, e invocar sempre a mesma completude: a continuidade do semeado. Se a semente transita entre os ocos, e se multiplica e impera, príncipe; mais não explica do que é a terra em que habita, e cujo alimento lhe faz viver.

*

À cultura do homem cultivado, espiritualizado, semeando mulheres terrenas, naturais, que alimentam os seus rebentos, há uma filosofia da criação do mundo que lhe espelha. Como quem pergunta pelo pai, vendo um bebê recém-nascido, perguntamos, vendo nosso mundo, como foi o disparo, a ruptura que fecundou originalmente a latência adormecida, dando início ao universo.

Nas trevas, estala a luz. Início: a ignição, a faísca que acende o combustível. Até Big Bang, especulações de um desejo de situar o momento em que se fecunda aquela continuidade preexistente com a marcação do tempo. Começo. Inauguração, no que era amorfo, de uma forma, uma ordem que nos chega até hoje.

E desse momento único, inacessível, herdamos toda a possibilidade da vida.

Dos rumos que esse texto encontra, em seu uso das palavras, somos levados a chamar patrimorfa toda especulação que busca um gatilho inicial, pois espelha um primado da fecundação.

Há duas maneiras de se remontar à origem: a patrilinear e a matrilinear. A patrilinear procura uma ruptura na linha do tempo, um momento clímax, a faísca que acende o fogo. É como estamos acostumadas a pensar: um salto de abstração até o momento de começo, essa divisória.

Já a matrilinear trata de uma continuidade, e a busca da origem se dá como subida pelos cordões umbilicais da matéria matriz. É uma genealogia gradual, onde a origem se evidencia na passagem de geração a geração.

À pergunta patrilinear da primeira fecundação, se complementa, então, não a pergunta materna do parto, mas a pergunta verdadeiramente matrilinear do cordão umbilical: como ver a origem em sua genealogia, subindo de geração a geração?

*

Buscamos demarcar um princípio: esquecemos como conceber um tempo ilimitado, que se perde e se desfaz no horizonte. Colocando ou não um grandioso arquiteto primordial, procuramos uma arquitetura de princípios imutáveis. Os fundamentos definitivos, o molde de leis que as manifestações materiais sempre seguirão.

Patrimorfismo: se de um lado se define que “nada se cria”, do outro lado torna-se necessário explicar como que um dia tudo se criou. Ao excluir do presente a criação, ela reaparece com enigma primordial. Nada se cria; toda vida provém da vida anterior; mas aí se apaixonam a falar da sopa primordial que um dia eclodiu. Ou bem decidem que houve um criador divino (que depois se ausentou) ou que ocorreu uma fascinante raridade – e daí se metem às pompas de dizer o que é certo ou errado sobre essa pré existência, cujos vestígios nulos permitem voar as especulações de um orgulho, de uma ambição que perdeu a medida.

Matrimorfismo: qual a origem do universo – e se não buscássemos mais esse momento? Se deixássemos a questão pousar indefinida, no além-concebível. Se aceitássemos ter mapas incompletos, com horizontes inexplorados. Levantar alto a bandeira de que sabemos pouco, muito pouco sobre o longe; e que mais vale investigar o que está perto. Sem se dar ares taxativos, afirmando isto e aquilo sobre fatos que nunca perceberemos?

E se a origem for agora? Infinitesimal movimento onipresente, abundante; e se as divindades não se ausentaram, são apenas lentíssimas, graduais; e se a existência simplesmente “veio surgindo” e ainda está num curioso movimento de criar-se e findar-se, de modo que, enfim, a pergunta sobre o início de tudo se desfaça, se desmanche, semeada como mil inícios e nenhum.

*

Herdamos a visão da educação como a passagem da iluminação de certo gênio, pai da ciência, que nos legou, de mestre a aluno, o acesso a sua descoberta: onde o conhecimento é uma posse etérea, uma senha, um código de deciframento que nos basta copiar, alunos estéreis em nossa repetição.

Esta filosofia do conhecimento (esse ordenamento da matéria) como abstrato, externo, imaterial – ela oculta como se dá a genealogia dos ordenadores da matéria. Se invertemos as valências e dizemos que é a matéria quem sabe, e que é o corpo quem aprende; a consciência e a fórmula abstrata reaparecem como o fenômeno de superfície, a figura que se forma a partir das forças que abaixo se dão. Pois o aprendizado, a passagem dessa fórmula abstrata, é sempre a sua recriação, reexperimentação, reinvenção por quem aprende. É sempre um processo material.

Difícil debate, quando o que temos por conhecimento nos aparece fundamentalmente em fórmulas fixas, conhecimento verbal, isto é, descrito, abstrato.

*

Herdamos a simbologia do homem moldando no barro a forma de um vaso: conformando na matéria amorfa, caótica, um ordenamento, uma razão. Sobre a matéria, uma forma; um molde abstrato, dito exterior e imposto ao mundo terreno a partir do intelecto supra-terreno, racional, espiritual.

Desta cena paternal deriva a pergunta patrilinear: onde vige a forma pura, de que estas, aplicadas, são meramente cópias? Como impressões de um carimbo, onde vige o carimbo original? Se a forma desce ao plano terreno, de onde ela vem?

Mas ao invés de complementarmos estes questionamentos com a pergunta materna do parto – mas e o artesão que produziu essa forma, e as mãos que moldaram esse barro? – novamente partiremos à pergunta matrilinear: como se dá a genealogia desse barro enformado?

E se a matéria, ela mesma, assume formas, como os contornos de sua pulsão; e moldar o barro é mais revelar as formas latentes na matéria, do que impor-lhe algo que nela não estava?

Perguntávamos: como ver os homens semeadores como extremidades polinizadoras da própria árvore uterina de cordões umbilicais? Como então ver as fôrmas de vasos e as mãos como extremidades da mesma matéria matriz que elas moldam?

Como enfim aprender com a aproximação destas duas perguntas, intuindo nelas uma mesma dualidade, e forçando então a linguagem a transpôr o que uma pergunta revela, para a outra?

*

O mundo patrilinear é o mundo da separação matrimonial da mulher, pois a paternidade só pode ser garantida se houver a monogamia uterina. Garante-se a linhagem paterna de acordo com o coito na monogamia.

É claro: se as mulheres têm muitos amantes, só é possível uma linhagem materna pois as linhagens paternas esboçadas logo desaguam em úteros sem demarcação.

Apliquemos o mesmo modelo ao trabalho no campo. Um agricultor que trabalha numa terra tira dela frutos; ele semeia, manuseia e ela cresce em plantas até a colheita. Se um camponês trabalha muitas terras ele pode ter muitas colheitas, mas não importa quantos a semeiem e manuseiem, a terra tem um limite do que pode dar.

Aqui, a filiação matrilinear sobe dos frutos às plantas e até à terra de onde elas brotam. Das muitas mãos que ali suaram e muitas mudas e sementes que se enraizaram, só a terra é garantidamente a mesma, capaz de firmar uma linhagem. Linhagem matrilinear da terra comum, do meio de produção, comum, e seus produtos pertencem a todos.

Para se demarcar outra linhagem, é necessária uma restrição, um acesso monogâmico. Para definir quais vieram das mãos de quem, para que o trabalho possa traçar dentre todas as colheitas a filiação que ele gerou, é preciso isolar a matriz acolhedora das outras mãos.

O equivalente da separação matrimonial das mulheres, aqui, é a separação patrimonial das terras. Cercas. Institui-se a divisão do solo como fundamento para a paternidade sobre seus frutos. Afasta-se o nascimento, acolhedor, para lidar com divisórias e exclusões.

*

É tão pungente essa imagem reflexa: o pai como autor do corpo, o autor como pai do livro. A matéria que compõe o bebê, ou que compõe a escrita, é apenas o meio, o enchimento; e a mãe, ou o artesão impressor, que lhes traz à luz, não passa duma espécie de estofador…

Cultuar o autor-proprietário é impedir a frutificação, é castrar (somente porque pego para mim as palavras de oswalde é que delas se gera uma prole) – é impedir a filiação (que ele seja matriz, motriz); ficam apenas as cercas do patrimônio.

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