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Dois anos de ÉS UMA MALUCA

junho, 2016

Encontrei o PV no terceiro dia de ocupação do projeto ZoNa, residência e exposição de despedida do galpão onde funcionava o coletivo És Uma Maluca, espaço autônomo de artes visuais em Vila Isabel. Sentamos num sofá velho enquanto alguns artistas iam chegando e desenvolvendo seus trabalhos. Ora ou outra, PV era solicitado por alguém pra tirar uma dúvida ou resolver um problema. O galpão já estava tomado de materiais. Dali dois dias a exposição abria ao público e o EUM se despediria oficialmente do espaço responsável por levar artistas em formação para discutir na Zona Norte, seguindo como coletivo.


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Pollyana Quintella: Como começou o “És uma Maluca”?

PV Alcântara: A ideia surgiu através do espaço. Era um espaço de família, que eu ocupava com meu ateliê e comecei a chamar amigos que queriam discutir seus trabalhos. A gente se reunia no meu ateliê pra pensar isso e conversar sobre arte contemporânea. A partir dos encontros a gente montou um núcleo de discussão e reflexão e nos encontrávamos quase todo dia. Foi então que surgiu a ideia de abrir o encontro ao público e a outros artistas, não necessariamente amigos. A ferramenta do facebook facilitou muito, a gente criava eventos e chamava pessoas fora do nosso ciclo de amizade. Em 2014 tava rolando uma efervescência de projetos culturais na zona norte, e foi uma bandeira que a gente incorporou, como a arte se posicionava na cidade. Nos baseamos muito no Norte Comum, embora eles sejam mais voltados pra cultura geral, música, e nós mais voltados para artes visuais. A partir desse movimento, levantamentos a bandeira da distribuição da arte contemporânea na cidade. A zona norte está excluída dessa discussão. Até discutimos muito um trabalho do Alexandre Vogler em que ele mapeava lugares na cidade em que se vendia e discutia trabalhos de arte, e o resultado é um mapa que exibe um claro desiquilíbrio. É absurdo. E então começamos a convidar artistas que produziam na zona norte. Mas, pra nossa grande surpresa, o fluxo de artistas de outros lugares da cidade foi muito grande. O problema não era só a zona norte ou a zona sul, mas sim a falta de lugares de discussão para a maioria dos artistas em processo de formação. A ocupação do espaço físico era movida pela utopia de ser um espaço aberto para a criação artística. Mesmo na zona sul faltava um espaço assim. A gente conhece muita galeria e instituição, a EAV, mas claramente faltam espaços de livre circulação e experimentação. Então surgiu o projeto OCUPA MALUCA. Uma proposta sem curadoria e seleção em que os artistas participavam experimentando e apresentando seus trabalhos.

Pollyana Quintella: Como vocês sabiam que vinham artistas da Zona Sul? Tinha algum tipo de questionário antes das pessoas participarem?

PV Alcântara: Isso rolava no bate-papo. Na época a gente se baseou muito num projeto argentino chamado “BOLA DE NEVE”, em que os artistas buscam uma libertação da academia da arte contemporânea, quero dizer, o sistema de arte, a legitimação do que é colocado nas galerias e instituições. No BOLA DE NEVE os próprios artistas indicam outros artistas, e eles mesmo se avaliam.

Pollyana Quintella: Então rolou uma pesquisa de outros exemplos de lugares que pensam e fazem arte?

PV Alcântara: Na época eu estava voltando de Londres, onde estudei. Eu tive muito contato com a zona da cidade que tocava esse tipo de projeto. Era uma zona à margem do circuito tradicional, algo que tentamos espelhar, levando em conta as diferenças da cidade do Rio, é claro. Também olhamos para o PIVÔ, em São Paulo. Eles são muito bem organizados pra se manter financeiramente. Pecamos nisso, mas também foi uma escolha nossa não se institucionalizar muito. Trazer isso pra Vila Isabel é outra coisa. No início muitas pessoas disseram que discutir arte contemporânea na zona norte não passaria de um ano, já que era fora do contexto da cidade. E a gente sentiu isso na pele. Há uma certa zona de conforto que algumas pessoas não querem sair. A gente sofre um pouco por estar deslocado dessa zona de conforto dos outros. Quem tem acesso ao capital cultural na cidade? Nos baseamos também em Pierre Bordieu, toda a sua pesquisa sobre acesso a arte. O grande desafio era como manter esse projeto, já que optamos por não vender nada, não cobrar entrada, não cobrar do artista, então como se sustentar? A nossa única renda era o bar.

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Pollyana Quintella: E as pessoas compravam cerveja?

PV Alcântara: Colocamos um preço acessível. Focamos em sustentar o espaço a partir do próprio frequentador. Mas essas pessoas também passam pelo perrengue de se auto sustentar. Essa vontade de ser independente de tudo, até de editais, sendo uma casa colaborativa, foi um erro. Algumas pessoas saiam do EUM pra comprar cerveja mais barata do lado de fora. Por mais que a gente deixasse claro que comprar aqui nos ajudaria muito, as pessoas pensavam mais em si. Quem entrava no espaço realmente achava tudo muito bem organizado. Ninguém tinha noção do trabalho, que era voluntário. Ninguém ganhava pra mover o espaço. Pelo contrário, as pessoas que acreditavam, colocavam seu dinheiro.

Pollyana Quintella: Dava pra pagar as contas da casa com o bar?

PV Alcântara: Às vezes sim às vezes não. Não era certo. A responsabilidade financeira era minha. Se faltava, eu colocava. Nunca sobrou dinheiro. O romantismo do coletivo se fragilizava por isso, porque a responsabilidade era minha. As pessoas ficavam um tempo aqui, mas por não ter um compromisso, podiam não estar aqui no dia seguinte. E isso trazia a discussão, é mesmo um coletivo? Se é, de que forma é? Até hoje é bem aberto, sem uma definição clara.

Pollyana Quintella: Como funcionava o OCUPA MALUCA?

PV Alcântara: Tinha uma lista de artistas interessados em participar. Vinham no evento e se interessavam. E então deixavam o nome e entravam numa fila. A gente tinha a preocupação de arrumar o espaço equilibrando a ocupação, quem ia falar com quem. Quando o artista se interessava, a gente deixava claro que era só aquele dia. Era levar o trabalho no dia, falar sobre ele no dia e levá-lo embora no dia. Era o artista que deveria pensar o trabalho dele no espaço. Então eram dois ou três artistas que dialogavam entre si pra posicionar os trabalhos, colocar prego na parede, se virar.

Pollyana Quintella: Tinha um tempo de fala?

PV Alcântara: Já tivemos fala de 5 minutos e de 3 horas. A proposta no início era que houvesse diálogo sobre o trabalho do artista. Se a nossa intenção era aproximar o público que não tem acesso, era importante que o artista falasse sobre o próprio trabalho pra gerar uma reflexão crítica junto do público. Tem muito artista que não é acostumado a falar, então era um bom desafio. Já tivemos caso de um artista que chegou aqui e não quis falar.

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Pollyana Quintella: E não tinha mesmo uma seleção?

PV Alcântara: Isso era uma discussão muito forte no início. Tinha a discussão do artesanato, por exemplo, cabia como arte ou não? Algumas pessoas acabaram não participando. Teve gente que queria vender filtro dos sonhos, por exemplo. A gente achava que aquilo não cabia.

Pollyana Quintella: Pois é, porque há um certo romantismo heroico nesse processo. Se por um lado isso permitiu um espaço inaugural pra alguns artistas em formação, por outro também traz o aspecto que sugere que não existe uma reflexão crítica, que tudo vale, tudo cabe.

PV Alcântara: A gente queria que nesse contexto houvesse o mínimo de pesquisa artística. Por exemplo, com os tatuadores. Alguns vieram expor, mas precisavam ter uma pesquisa, uma reflexão. Se fosse só comercial, não cabia. A apresentação tinha que ser uma reflexão.

Pollyana Quintella: Havia mediação nas falas?

PV Alcântara: Não. Começou a ter no final, nos últimos ocupas. Começamos a divulgar o projeto em meios mais estabelecidos. Vieram artistas que já tinham um espaço, e também curadores. Gente que já trabalhava profissionalmente mesmo, diferente de quem ainda estava procurando um rumo, bem em desenvolvimento, em formação. E começamos a receber pessoas pra dar palestras. Houve até uma certa resistência, algumas pessoas diziam que estávamos ficando elitistas, dando menos espaço pra artistas iniciantes. Mas trazer alguém importante pra falar era uma forma de formar os artistas, a gente não estava fechando espaço nenhum.

Pollyana Quintella: E vocês começaram a tocar projetos paralelos fora do espaço, não é?

PV Alcântara: Sim, esse foi o OCUPA, que esteve desde o início. O ocupa rolava toda quinta-feira. Era legal ter toda quinta, mas essa frequência era também uma forma de movimentar o bar. Num determinado momento a gente se perguntou se estava desenvolvendo algo que acreditávamos ou se estávamos administrando um espaço e preocupados em vender cerveja. Nesse momento era mais administrar um espaço do que ser um coletivo. Manter era a maior preocupação. O ocupa funcionou da mesma forma durante um ano, nunca remodulamos porque a preocupação maior era administrar o galpão. Então durante esse processo fizemos projetos remunerados, da FIRJAN e do SHOPPING BOULEVARD, fizemos a produção e curadoria, levando nossos artistas. E ai bateu uma reflexão, agora somos produtores? Somos um coletivo de curadores? O espaço e as contas eram um grande problema pra todo mundo. Ao mesmo tempo que era foda, era muito custoso e complexo pra manter.

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Pollyana Quintella: Em que momento vocês perceberam que o espaço não ia mais dar conta?

PV Alcântara: Quando eu fui morar em Saquarema, em julho de 2015, eu comecei a pensar nisso, porque havia uma falta de identidade do coletivo. Eu era uma figura central, que segurava a onda, e então quando eu sai uma galera dispersou. Surgiram novas pessoas e a casa tentou manter seu fôlego, rolaram coisas fodas, o ocupa continuou com essas novas figuras, mas o coletivo perdeu um pouco a identidade. Meu pai começou a administrar o espaço, que é dele. A contrapartida era pagar as contas. Então mesmo sem pagar aluguel, não conseguimos manter o espaço. A gente tentou edital, tentamos algumas coisas, mas não era a nossa. Sem tesão não rolava. Trabalho burocrático era insuportável. O problema do espaço foi administrativo. Tinha muito artista e pouco administrador. Faltou alguém com essa visão pensando na grana. Então o espaço não dava mais conta. Nos reunimos e decidimos procurar outro espaço, o que também não rolou. E nos demos conta que podíamos existir sem espaço, como coletivo. Aí publicamos um texto declarando que acabou. Cada um foi pro seu lado e a casa fechou em janeiro de 2016. Fechamos com duas exposições, uma de alunos de um curso da EAV (aliás, exigiram a logomarca da escola e do Estado e não ajudaram em nada. A Lisette Lagnado veio aqui, fez uma cara feia, não dialogou e foi embora), e outra de formação dos alunos do curso de artes da UERJ, dois projetos lindos.

Pollyana Quintella: E o que rolou dai pra frente?

PV Alcântara: Alguns membros até hoje estão dispersos. Como eu tinha um contato mais próximo com o Leo Sales, continuamos conversando e queríamos reativar a rede que tínhamos construído. Criamos um corpo de pessoas e conhecimentos, de várias áreas de atuação, artistas, curadores, pensadores, e isso não podia se perder. Como poderíamos pensar isso sem espaço? Começamos a ler textos, estudar. O próprio TAZ do Hakim Bey, trouxe a possibilidade de nos pensarmos como uma zona livre. Então publicamos um manifesto pensando o que queríamos como coletivo, sem espaço. Marcamos uma reunião aberta pra quem quisesse agregar, a partir do novo manifesto e de suas propostas. Isso gerou encontros de onde saiu o projeto zoNa. Procuramos uma casa pra fazer uma grande ação de retorno, convidando todos os artistas que passaram pela gente, mas encontramos o problema de lidar com a institucionalização do espaço. Com os limites que enfrentaríamos, resolvemos não fazer lá. Não havia mais a pressão de administrar espaço nenhum, era um corpo de pessoas a fim de produzir artisticamente. Então numa noite eu tive a ideia de fazer no nosso antigo galpão. O espaço estava fechado e podíamos fazer um fechamento lá. Meu pai topou, ele sempre foi um incentivador do projeto, sempre apoiou tudo. E por fim, voltamos, mas só pra essa ocupação. Depois o espaço será alugado.

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Pollyana Quintella: E o que é o projeto zoNa?

PV Alcântara: O zoNa é uma forma de reativar essa rede que construímos. É um modo de profanar o dispositivo da arte, como o Agamben diz. Fazer uma ação com 54 artistas é uma forma de provocar uma liberdade de criação que está além de um sistema estabelecido da arte. É uma construção nossa. Claro que precisamos levar a questão financeira em conta, mas pensar esse espaço como lugar pra pirar, fazer o que quiser pra além do que o sistema impõe, é maravilhoso. Aqui é uma zona autônoma de tudo, sem verba nenhuma, estamos nos auto curando. Pedimos para os artistas trazerem material de limpeza, nós mesmo fazemos faxina. É uma forma de revelar algumas deficiências. Se auto avaliar, se auto gerir, é uma forma de expressar nosso manifesto. A primeira ideia era transformar o espaço no nosso manifesto. Reunir todos os artistas que estivessem a fim, num trabalho coletivo que seria resultado de uma residência de uma semana no espaço, e que por fim seria aberto ao público no final de semana em formato de viradão (aberto de sexta 19h até sábado sem horário pra acabar). Há um sistema de auto curadoria entre os artistas (quem vai ocupar qual espaço, quem vai usar qual material disponível). Antes queríamos que todos produzissem a mesma coisa. Mas era impossível por uma questão de horário e compromisso. Então o espaço da ocupação fica aberto, as pessoas produzem o dia todo e no final do dia, às 21 horas, nos reunimos pra contar o que está sendo feito, discutir, receber críticas e trocar com o resto do coletivo. E tem surgido discussões incríveis. É um processo aberto de diálogo e interação e isso também gera tensões e faíscas. Poder fazer tudo numa exposição tem certas responsabilidades. Se o cara quiser rasgar o trabalho do outro, isso vai ter um retorno, é preciso negociar.

Pollyana Quintella: Pra terminar, fala um pouco de você, dos seus interesses, do seu trabalho.

PV Alcântara: Minha formação é em desenho industrial. Como a maioria dos aspirantes à arte, comecei a fazer vários cursos na EAV. Trabalhei muito tempo com publicidade que foi o que me sustentou financeiramente e o que me permitiu juntar dinheiro pra estudar em Londres, já que eu tinha cidadania portuguesa. Fiz design por causa da família, e agora finalmente estou estudando arte. Então eu vou pra Londres, faço um período, volto pro Brasil e tranco o curso. E assim vai, vou fazendo aos poucos. Estou gostando muito. É um desafio, ainda mais em outra língua. Essa vivência influenciou muito o projeto do EUM. Fiquei fascinado com a cena alternativa de arte de Londres, e ela se sustenta financeiramente. Isso é fascinante. Existe um mercado pra isso que consegue sobreviver. Também sou muito ligado em marcenaria, sou marceneiro de persistência. Tenho uma oficina em Saquarema, onde faço móveis, mas não profissionalmente. Falar sobre meu trabalho artístico é difícil porque estou num processo de descobri-lo. Antes eu me ligava mais em técnica, depois percebi que não era bem isso. Cresci muito com o EUM, tenho trabalho com pintura, performance, instalação, videoarte. Estou numa busca. Vejo meu trabalho artístico como parte dessa pesquisa do EUM. No inicio eu não entendia muito bem, mas agora eu já tenho mais maturidade pra acreditar que o EUM é a minha pesquisa.

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