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junho, 2014

Renato Rezende é autor dos livros de poesia Aura (1997), Asa (1999), Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008); dos romances Amarração (2012), Caroço (2012) e Auréola (2013); além de ensaios e traduções, entre as quais destaco a de Caos: terrorismo poético e outros crimes exemplares, de Hakim Bey. O artista-filósofo caracteriza-se pela versatilidade de sua produção e pela pesquisa constante sobre arte moderna e contemporânea em distintas linguagens, como a literatura, as artes plásticas e a performance.

Em Noiva, Rezende investe no hibridismo do texto, e parece apontar à noção antiga de que a linguagem não é nem poesia nem prosa, mas seu intermédio. Verso, prosa, prosódia, especulações e diários de viagem são dispostos ao modo de pequenas esculturas textuais. Os 24 poemas podem ser lidos como um mesmo, devido à identidade profunda das partes. No entanto, cada poema e a obra como um todo parecem fragmentos ligados ao estilo parangolé, menos uma síntese que uma bricolagem de escrituras. A passagem de uma a outra paisagem textual é fluida, roçando acidentes, nunca interrupções. Perpetuum mobile. A multiplicidade de vozes em cena é enfatizada pelas cesuras do texto, bem como pelo câmbio de fonte entre normal e itálico, a primeira indicando algo como uma “voz em off”, a última em tons de enunciação.

Durante toda a obra, a experiência das coisas, do corpo em especial, é confrontada com a reflexão – no sentido de “pensar do pensar”, do pensamento que se estranha a si próprio. Como sublinha Claudia Roquete-Pinto na aba da edição inaugural, sua poética traz lembrança dos desassossegos de Bernardo Soares (ou Fernando Pessoa), pela confluência entre poesia e filosofia. A linguagem é predominantemente simples, salvo a presença pontual de radicais gregos ou latinos, ou de signos indo-orientais, alguns de difícil apreensão. Em vez de depurações rigorosas, exploram-se imagens, texturas, cores. O leitor de Noiva adentra uma prosa poética navegável, onde as palavras transcorrem ao suave de uma conversa.

O livre trânsito pelas aduanas da linguagem faz de Noiva uma experiência de fronteira. Uma dúvida ou hesitação prolongada. Entre a poesia e a prosa, o abismo e a linguagem, a pulsão e o pensamento, o feminino e o masculino. Entre o ir e o não ir. O ser inteiro e o infinito, qual seja, o zero e o um. Ser ou não ser Noiva. No centro dessa aventura poética está o paradoxo entre as possibilidades do ser — que comporta, em potência, muitos outros — e a fatalidade de fingir-se uno, ao responder por um corpo e uma vida circunscritos. O exercício seria o de conceber um ser infinito, livre da culpa vã e do peso da memória. Alguém cuja vida recomeça a cada acidente, cada gesto.

FLORES

ENSAIO

“Palavras dão corpo” ao que estava por fazer-se, o que passa a vida nascendo. No poema “O Outro”, está dito: “Eu sou alguém que não sabe quem é e tenta se inventar com palavras, fora esse esforço, sou mudo — isso é ser poeta?”. A preocupação com a autopoiese — o criar a si mesmo — desdobra-se em outras, como a que toca o binômio linguagem e ação. Qual a fronteira entre dizer e ser? Se nós atuamos segundo uma linguagem que em nós se elabora, como tomar posse disso? A poesia é também a vida, ou apenas sua antessala?

“O Dia”, poema de abertura do livro, dá nota de um diário de imobilidades, cujo narrador não logra estar ou sair de si mesmo. Sentimentos o atravessam, mas parecem não estar nele, qual o vento cortando a casa.

O DIA

Enquanto o dia avança, ele pede “um corpo, uma voz, uma função”, como tivera de refazer-se cotidianamente. Intui que investir sua liberdade implicaria o risco de perdê-la, pois ao fixar-se em um projeto, excluiria os outros possíveis àquele momento. Em “Rapina”, dispõe: “Sem fazer nada, farei tudo— e farei qualquer coisa / (pois eu já não sou eu)”. Em não optar, não age. Deita-se “na cama, no meio dia”, verso que sugere tanto o descompasso com a cronologia moderna do trabalho, como a imagem de um corpo estirado entre as metades do dia, feito uma ponte. O verso “não quero fazer nada”, poderia ser lido também como: não quero ter de escolher uma só vida, a repetição eterna de um mesmo esforço, o trabalho de Sísifo em desamor. A noiva atravessa os dias como uma equilibrista:

EQUILIBRISTA

O dilema da ação retorna em outros poemas. Em “Azul”, as ações parecem dotadas de um estado de graça, de leveza, que sucede algo que o poeta chamou de morte, lembrando-nos da quietude que segue os dilúvios.

(…)
Azul

No mesmo poema, escreve “Eu vivo de milagres/ Eu nunca fiz nada”; “Ponha-me sobre o tempo / Sempre quis uma vida maior do que a que cabia em mim,”; “O que fazer com esse corpo?/ [UM CORPO DE LUZ]”. Em Bússola, o desatino dos movimentos ensaiados pelo lírico vem da vigília de seu desejo.

bussola2

A dificuldade em agir — diz-se “fazer alguma coisa” — parece ser a de sincronizar o desejo e o dever, o gesto interno (linguagem) e o externo (ação). Aos olhos de nossa época, a poesia, coisa sem objetividade, é como o inverso do trabalho providente. Tanto mais por seu mergulho no tempo da criação, que escapa ao tempo linear-mecânico da indústria. Não surpreende que, desde o romantismo, muitos poetas hajam conhecido sentimentos marginais perante os “homens sérios” e seus assuntos. A metáfora de Rimbaud, em “Sangue Mau”, compara seu ofício aos bárbaros gauleses que, inaptos para a lavoura, vivam da caça, do saque e dos prazeres: “a vida floresce com o trabalho, velha verdade: mas eu, não acho a vida assim pesada, ela se evola e flutua longe muito acima da ação, ponto axial do mundo”. Entretanto, a vida de Rimbaud não foi senão uma overdose de ação. Noiva exprime uma sensação análoga de margem, de “isolamento próximo”, em versos como “teria a coragem de dizer que não me sinto, frequentemente, uma pessoa?” (“Tento-Carolina”); ou em “Beija-Flor”:

beijaflor

Uma literatura que emerge de um palimpsesto de esboços, ou, em suas palavras: “O fracasso como método de ascese” (vide “Equilibrista”). O fracasso em ser indivisível, indivíduo. O fracasso como objeto e o de toda obra de arte, que é sua porta entreaberta a nós e ao devir. Folhas em branco entre os poemas deixam pista da proposta habitável da obra, que se dá em aberto.

Ao fundo claro de uma poesia seminua, as coisas ditas quedam em suspenso, como vertigens ou aporias. Sombras a barra do vestido insinuasse. Busca-se uma poesia “impura”, colhida no acaso, na contingência, no inconsciente. Assim procedendo, o autor desafia truísmos parnasianos e modernistas, propondo um modernismo avançado em que os últimos são já de praxe, e o artista consente remoçar, profanar, errar incluso. Não por haverem caducado aqueles, mas por ser, noiva, cio de possíveis, pronta a sacrificar sua pureza e deixar-se cair, abrir-se ao fogo. Morrer até.

ChamasOssos

Apreciando as ideias antropológicas, pensemos o noivado como um rito de passagem, e este como dramatizações que pontuam mudanças no que na vida se entende por “situação”, ou “fase”. Na interpretação, por assim dizer, clássica, o rito se inicia com o afastamento de um “mundo” anterior do qual fazia parte o iniciado, e consuma-se no momento de adaptação ao novo. Entre, jaz o período liminar, ou de indefinição, quando é comum a floração de sentimentos inauditos, tomados por egoístas, se confrontam as normas. Em alguns casos, a liminaridade é acompanhada de torturas e privações. Contudo, nestes poemas, não se divisa nenhum porto de chegada. Assim, é como se o lírico permanecesse noiva, fazendo da passagem a sua razão de ser. Desse lugar metamórfico, Noiva preenche suas cartas.

Não se visita Noiva com lanternas da razão. Como o escultor cego os seus modelos, ela tateia. Fugas se ensaiam, desejos inflamam. Seus corpos-linguagem deixam-se mirar, percorrer. Através desses corpos, quer a noiva tocar o seu. A noiva que nada esconde e tudo segreda.

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