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conto chileno nº1

abril, 2015

aos nove anos chorei pela primeira vez com um poema. não sei se era bandeira ou bilac se neruda ou cecília. ou os quatro. fui com minha madrinha ao centenário de neruda. o consulado costumava chamar sempre a comunidade chilena pra essas atividades. era no auditório da abl e algumas pessoas deveriam falar. eu tinha nove anos. fomos eu e minha madrinha ao centenário do poeta chileno pablo neruda. o consulado, que naquela época fazia grandes bailes e distribuía grandes prêmios, promovia um evento no auditório do prédio anexo. iam falar zélia gattai e mais alguém. a mão tensa e fechada da minha madrinha. isso foi quando eu tinha nove. talvez drummond ou joão cabral. minha madrinha me levou pra abl ouvir uma homenagem a neruda, o poeta comunista. meu dindo era comunista. mas depois descobri que na verdade ele era socialista. minha madrinha também era minha dinda. o consulado sempre os chamava pra festas del día 18, por exemplo. já foi no clube judeu de laranjeiras, já foi no clube espanhol da tijuca, já foi no boqueirão ali perto do aeroporto, já foi no clube português do cosme velho. acho que os chilenos nunca tiveram um clube próprio. a última festa foi um fracasso mas uma banda tocava violeta parra e inclusive cantaram uma do victor jara. de qualquer forma só se animaram quando veio la cueca e os velhos dançaram. meu dindo e minha dinda sempre eram os melhores dançarinos. com nove anos eu ouvia o cover dos beatles num restaurante pernambucano. o severyna ficava num sobrado em laranjeiras. no primeiro andar era uma coisa e no segundo outra. acho que nunca fui no segundo. meus dindos eram os melhores dançarinos. nós sempre comíamos uma pizza de queijo coalho e um aipim frito. na abl eu ouvia a zélia gattai falar do vinicius de moraes e do jorge amado e do pablo neruda. zélia gattai parecia nome de médium de revista que escrevia romances psicografados e era isso que eu pensava na época. ou isso é o que eu penso hoje. vi a foto dos três num barco e zélia parecia querer sempre explicar alguma coisa. a mão tensa e fechada da minha madrinha. a mão tensa e macia da minha madrinha. eu tinha nove anos. fui à abl ouvir zélia gattai. com onze anos eu vi um livro na biblioteca do colégio chamado anarquistas, graças a deus e só fui entender a ironia aos dezesseis. mas eu tenho nove anos, e hoje vou para a abl com a minha dinda, que me arruma e perfuma lindo de la dinda. é centenário de um dos mais importantes poetas de chile, diz meu dindo. pablo neruda e gabriela mistral, los más grandes. ele não devia conhecer los quatro grandes de chile. según nicanor eran tres alfonso de ercilla y ruben darío. eu tinha nove anos. mas não disse isso a ele. tinha também manuel rodríguez e etc. manuel rodríguez era poeta? meu dindo não foi pra abl. precisava trabalhar. ali é vinicius ali é neruda e ali tá jorge, que saudade dele, isso foi quando neruda veio para o brasil e nós fomos passear de barco. anarquistas, graças a deus. no final deram um livro de capa preta com a silhueta do neruda e tinha uma pequena antologia de poemas, além de breves notas biográficas. pablo neruda foi senador. jorge, ah jorge. isso foi com nove anos de idade. a mão macia e fechada da minha dinda. a mão lisa e intranquila da minha madrinha. tínhamos acabado de chegar no catete e eu fui para o quarto (eu ainda tinha medo de dormir sozinho). e tocava a banda volver a los diecisiete es como vivir un siglo e meu dindo e minha dinda e todos em volta comentavam e gritavam e alguns ouviam a música e cantarolavam inclusive batiam palma se va enredando enredando como en el muro la hiedra y va brotando brotando como el musguito en la piedra como el musguito em la piedra ay si si si. depois de bolaño neruda nenhum é o mesmo. nove anos. es tan corto el amor y tan largo el olvido. tinha os quatro grandes do chile que para o meu dindo eram três pablo neruda e gabriela mistral. eu estava perfumado e penteado. no quarto eu fechei o olho (ainda tenho medo de dormir sozinho). podia ser pessoa ou mesmo helder hilda angélica freitas ou mário de andrade com poucas chances. podia ser porque fica um pouco do teu queixo no queixo de tua filha. eu tinha nove anos e meu pai, que morava num sítio em guapimirim junto comigo meu irmão minhas irmãs e minha mãe (pelo menos até os meus dez anos), tinha um livro do olavo bilac de 1947. ora direis ouvir estrelas certo perdeste o senso. hoje eu não me deixo enganar. nove. foi a primeira vez que eu chorei com um poema. fui com minha madrinha ao centenário de neruda e ouvi zélia gattai falar. no quarto repetia eu urrava nos poliedros da justiça meu momento abatido na extrema paliçada mas podia ser ezra pound com pasolini

dumas só chora porque dumas tem lágrima

 

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