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As maritacas voam porque berram

fevereiro, 2015

Não, não é muito lírico. Nem limpo. O título pesado sugere o que acontecerá. Betoneira é a máquina usada para misturar os materiais que produzem concreto: pedra, água, cimento e areia. E nessas quatro partes é que se divide o segundo livro de poemas de Thiago Cervan.

Obviamente não se trata de um diálogo cult com o concretismo ou com qualquer vanguarda / retaguarda literária do século XX. Admirador mais declarado de Solano Trindade e daquele Manuel Bandeira de café-com-pão do que das galáxias de Haroldo de Campos, Cervan cultiva a simplicidade daqueles a quem dirige o seu olhar e seus versos. Mas não esconde o apreço pelo bisturi de um João Cabral de Melo Neto, por exemplo, que é indiretamente citado logo no início do livro: “[o tecer pertence / aos galos]”.

Com notável amadurecimento desde o seu livro de estreia, Sumo Bagaço [1] (Edições Maloqueirista, 2012), estes poemas de Dentro da Betoneira alcançam imagens mais fortes e escorregam pouco no puro maniqueísmo da velha luta de classes. O tom panfletário é sensível em diversas passagens, o que talvez se justifique numa poesia totalmente incorporada às práticas políticas do autor, mas aqui já não se trata apenas de defender os bons (despossuídos) contra os maus (endinheirados), e sim de discutir possibilidades de habitar um mundo sufocante, pesado. Por isso, mesmo quando se inclina sobre uma denúncia social, ele quase sempre revela uma outra camada, como no poema reificação:

a fachada misteriosa da fábrica à beira da marginal taioca
fabricava assombrações em minha imaginação

seu terreno cercado por bambus
e lacrado por um espesso portão preto
parecia guardar enigmas indizíveis

anos depois descobri que não havia nada demais
naquele lugar: era uma simples fábrica de móveis
de tamanho mediano

de onde saíam sofás, camas, mesas
e trabalhadores exaustos em série

Ao invés de “dar asas à imaginação” e fazer uma excursão alegórica no interior da misteriosa fábrica, o poeta se encarrega justamente do fato que dessublima a imagem. Mas embora tudo pareça tão absolutamente direto e transparente, é notável o efeito irônico da terceira estrofe, quando ele diz: “anos depois descobri que não havia nada demais / naquele lugar (…)”, como se a descoberta da divisão do trabalho fosse realmente menos assustadora do que sua imaginação infantil mal assombrada; como se a exploração naturalizada das forças produtivas do homem fosse menos monstruosa, como se um serial killer imaginário pudesse causar terror mais cortante do que a imagem desses “trabalhadores exaustos em série”.

Além disso, a fábrica de “móveis / de tamanho mediano” fica não apenas na periferia de um país periférico, como à beira da marginal taioca, ou seja, na margem da margem da margem. E é passando por esses limites ou ilimitadas margens geográficas / sociais / existenciais /econômicas que o livro todo se articula.

Por exemplo: o terceiro poema do livro se chama upp, em que a narrativa do morador de uma favela ocupada pela Unidade de Polícia Pacificadora adquire o sotaque estereotipado de um índio (índio que aparece também num poema cítrico do Chacal) [2]: e eles chegaru / sem espelho [nenhunzinho] / tudo vestido de preto. só / dava pra ver os zoio. / chegaru sem cruz, sem catecismo./ foi tudo limpo. Sem engano. / só subiru e mandaru todo mundo entrá e quietá e / oiá sem vê (…)”. O objetivo político é expresso, mas o trabalho com a língua o fortalece e complexifica, possibilitando desdobramentos produtivos. Até porque talvez nem se trate de um índio (apesar das evidências), mas de um “mano” da periferia de São Paulo. Quem sabe? A fusão enriquece o enredo.

Um dos melhores poemas da recolha se chama “não é com roberto baggio”, que me leva a recordar uma exposição sobre a arte do futebol que estava no Centro de Arte Contemporáneo de Quito, poucos dias antes da vexaminosa Copa do Mundo no Brasil. A obra da fotógrafa afegã Lela Ahmadzai, por exemplo, mostrava a seleção feminina de futebol de seu país treinando num campo protegido dos muçulmanos fundamentalistas por soldados do exército, com o jogo eventualmente interrompido pelos helicópteros de guerra. Já a vídeo do brasileiro Mauricio Dias e do suíço Walter Riedweg exibia uma simples pelada noturna numa favela do Rio.

O poema “não é com roberto baggio”, possivelmente inspirado também no lindo poema sobre Ademir da Guia, de João Cabral, ironiza o fiasco do pênalti cobrado pelo atacante italiano na final da Copa de 1994, que deu a vitória ao Brasil e se tornou motivo de chacota cada vez que alguém vai bater um pênalti numa pelada:

limpa a cal do terreno & com passos de caranguejo
busca o eixo do equilíbrio | mira, apenas mira | no
universo do rito somente o silvo de metal sensibiliza
os tímpanos | mira com a respiração suspensa |
& faz o ângulo engolir a esfera liberta em apoteose

Outro poema bem construído é “Encosta”, em que o espaço íntimo de um casebre é singelamente descrito (“a cozinha onde / se preparava o feijão / com coentro e o suco da / acerola colhida do pé do / quintalzinho dos fundos (…)”) até que uma catástrofe – talvez um deslizamento de terra – deixe por ali apenas “um lamento marrom”. Ou o poema “hc”, que, mesmo amparado sobre trocadilhos fáceis, mostra para onde o olhar do poeta se dirige: “(…) os tubos / não são de nenhum órgão / porém tocam / dolorosamente / o corpo pianíssimo / de minha avó”.

Entre os que mais chamam a atenção estão ainda os poemas “o vendedor” (sobre um vendedor de cangas), “tampa branca”, que fala do enterro de uma criança (“quando as cordas / começaram a descer o esquife / o hino das harpas cristãs das assembleias de deus / foi entoado pelos irmãos da igreja do jardim cambuí (…)”) e “pito” (sobre uma prosaica “perna de grilo” fumada à noite, brilhando como um vaga-lume).

O livro pode ser lido num tiro, mas se complexifica em muitos textos, como no caso de “reificação”. Ele possui seus altos e baixos, mas mesmo diante dos trocadilhos mais simplórios é impossível saber o que acontecerá, porque os poemas vão bem além do livro, muitas vezes acabam falados / musicados [3] / pixados e se transformam num outro tipo de artefato. É como se fosse pixo em muro branco que eu leio algo como: “órbitas de óbitos / eclipses / e um buraco no negro”. Talvez não seja de “bom-gosto”, segundo alguns parâmetros críticos da academia, mas fica na cabeça da rapaziada. Emplaca nos slams. E como diz o próprio Cervan: “(…) o poema sem mito, sem eruditos perdidos na pharmácia hermética do fala-fala-e-não-diz-nada (…)”.

De qualquer modo, a principal qualidade do livro é a tentativa – muitas vezes bem pensada e articulada – de dar voz a quem continua refém do seu mutismo (mais ou menos como diria Francis Ponge, nos Métodos).  Pessoas cuja rotina é tão circular quanto a pedra, a água, o cimento e a areia dentro de uma betoneira. Somos quase todos nós essas pessoas que saem de casa para pegar o metrô em silêncio e não sabem que “as maritacas / voam porque / berram / e no berrar / incansável / acordam árvores / de raízes centenárias”.

Nessa época em que a poesia ainda é compartimentalizada para ser aceita (etnopoesia, poesia periférica, poesia feminista, poesia gay, etc.), talvez seja preferível pensar que a poesia é sempre uma margem dentro da margem, uma forma mais ou menos sutil ou violenta de drible (para usar a expressão de outro amigo, o poeta Heyk Pimenta [4]). Encerro a resenha de Dentro da betoneira com um trecho do livro Fazer, a poesia (1996) de Jean-Luc Nancy, recortado de um artigo de Raul Antelo:

A poesia é, por essência, mais do que e algo de
diferente da própria poesia. Ou antes: a própria
poesia pode perfeitamente encontrar-se onde não existe
propriamente poesia. Ela pode mesmo ser o contrário
ou a rejeição da poesia, e de toda a poesia. A poesia
não coincide consigo mesma: talvez seja essa
não-coincidência, essa impropriedade substancial,
aquilo que faz propriamente a poesia.

 


[1] Eu escrevi um texto sobre o Sumo Bagaço, de Thiago Cervan e o livro Pequenos Golpes, de Giovani Baffo, em 2012. O texto se chama provocativamente Poetas Sem Qualidades e está disponível na página da Editora Cozinha Experimental: www.editoracozinhaexperiemental.blogspot.com

[2] Veiu uns ômi di saia preta / cheiu di caixinha e pó branco / qui eles disserum qui chamava açucri / Aí eles falarum e nós fechamu a cara / depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo / Aí eles insistirum e nós comemu eles (Chacal, Papo de Índio).

[3] O poema “Encosta”, por exemplo, virou letra de samba.

[4] O Heyk costuma chamar os enjambements de dribles, o que me parece absolutamente pertinente.

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