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Um ponto cego nos dias

janeiro, 2015

O que fazemos todos os dias? O que é preciso fazer todos os dias? O que é de todos, todos os dias? Que são os dias? E todos eles? Os dias nascem sozinhos? Nós fazemos os dias, mas não sabemos que os fazemos? O ser humano se diferencia dos outros animais pelos dias? Os dias nasceram com o polegar opositor, e ele se repete todos os dias? Que faz o polegar opositor quando não inventa, quando é apenas um polegar opositor todos os dias? O que fazemos todos os dias?

Mais cotidiano que o cotidiano (2013, Azougue) sugere muitas perguntas. Ao imergir no cotidiano (subst. m.) para extrair dele, como em uma mina, o que seria mais cotidiano (adj.) que o tal, Alberto Pucheu assume a difícil tarefa de imergir na água grossa que nos cerca todos os dias. Não é por acaso que o livro começa com uma espécie de iniciação: “É preciso aprender a ficar submerso / por algum tempo. É preciso aprender.”1 Tow-in.2 O poeta se/nos reboca para dentro da onda que evitamos todos os dias.

Que fazemos quando estamos fazendo aquilo que fazemos todos os dias? Muito foi dito sobre a banalidade dos dias. Certa tradição filosófica sempre quis se impor contra o banal, contra aquilo que fazemos apenas por fazer, contra aquilo que é o estritamente comum. Com esse desejo (nomeemos: um desejo de distinção de classe, no sentido político), abdicaram de compreender o que acontece quando estamos nesse âmbito. Na contramão, em seu “Poema para ser lido na posse do presidente”, Alberto Pucheu fala, atribuindo-lhe a maior importância, de um de seus mais cotidianos movimentos: passar por pessoas na calçada de casa no caminho que faz até um restaurante ou botequim, enquanto se esquece, por um momento, que fazia justamente este caminho para chegar ao restaurante ou botequim. Neste esquecimento de si e das tarefas do eu, o poeta se pergunta:

Talvez, neste momento, eu seja
também para mim e ela também para ela
o que somos um para o outro: alguém
que se esquece de onde está vindo
e aonde está indo, de seu nome, de seu trabalho,
alguém que sobe ou desce uma rua, nada mais.
Ou algo mais, ou menos, não sei, que vai
comendo o nome, o trabalho, o parentesco,
as demandas que recaem sobre nós,
largando-os pouco a pouco pelas latas de lixo
penduradas nos postes, deixando-os cair
ao meio-fio, por entre as rodas dos carros,
cumprindo o destino comum de todos os dejetos.3

Há certo mecanismo (ou animalismo) no cotidiano que nos desliga de (ou come a) nós mesmos. Desligar-se do nome, ou tê-lo comido, é perder-se. Alberto Pucheu se pergunta o que acontece exatamente neste momento. O que é feito de nós – o que nós mesmos fazemos – quando restamos? “Diversas vidas vêm e vão em um só corpo”,4 diz Pucheu, como quem sugere que precisamente nesse estado somos como os médiuns, dotados de certa abertura espiritual para que o outro se insinue pelas frestas do corpo. E não é esse o procedimento poético que propõe Pucheu?

Já no seu primeiro livro de poemas anunciara o que estaria por vir neste último. Na cidade aberta (1993) traz no título a tentativa de ver o espaço como uma central mediúnica de forças. Nos “Dois poemas em lugar de prefácio”, essa central mediúnica tem como mito de origem uma chuva de palavras que cobre a superfície (da cidade?):

caem as palavras
se não bastassem as folhas
e os pingos da chuva 5

No poema “Na cidade aberta, nº3”, Pucheu apresentava um de seus arranjos em estado bruto, mas talvez ainda hoje o mais consciente entre os tais arranjos. Todo feito de palavras de ambulantes de trem, desses que vendem toda sorte de quinquilharias, doces e utilidades domésticas, o poema parecia demasiadamente deslocado dos outros poemas do livro – tão escandidos, tão milimetricamente cortados e lapidados. Dizia: “alô ráls paga mil / bananada é cem bombom serenata dois é mil / de mil e quinhentos lá fora na minha mão é mil / cem alô bananada é cem cruzeiros / dois mil o isqueiro dois mil alô ráls paga / mil é o verdadeiro paga mil / biscoito globo promoção globo”.6

O arranjo é o fazer poético daquele que consegue se colocar na posição de médium, mas de uma forma quase avessa à teoria geral dos médiuns. O arranjo não é uma forma poética de um eleito: Alberto Pucheu não carrega consigo nenhuma marca distintiva, nesse sentido, não professa uma faculdade especial, a qual teria sido destinada a alguns gênios da raça. Não, para produzir um arranjo bastariam dois movimentos (e não duas características): deixar que comam seu próprio nome, e, em função dessa ausência mesma (dessa ausência presente, como “a poesia / do dedo que falta na mão do presidente”),7 tomar de empréstimo tudo o que se aproximasse. Ou, como na fórmula romana atualizada por Waly Salomão: “Nada que se aproxima nada me é estranho / Fulano sicrano e beltrano / Seja pedra seja planta seja bicho seja humano.”8 Na poesia de Alberto Pucheu, a musa é o Outro.

É desse modo que a sua poesia de Mais cotidiano que o cotidiano realiza um movimento de dessacralização de todos os dias. Sua poesia tem o ambicioso projeto de transformar todo o mundo em objeto de uso comum. Médium, em Pucheu, é todo aquele que usa as coisas, que as profana despudoradamente, e a abertura é feita no próprio sujeito por ele mesmo.

Dessa perspectiva, talvez não nos seja tão estranha, ainda, a ordem do poema “Feche os olhos e leia”. O poema afirma ainda:

Nada sou. Ou um qualquer
sem nome, musa, deus, inferno ou guia.
Ou um qualquer, no meio do caminho
de sua vida sem começo ou fim,
sem se encontrar achado nem perdido.9

            O cotidiano é percebido por nós como o conteúdo de nossos dias. Aquilo que os preenche, que dá alguma massa uniforme à, de outra maneira informe, vida. Para Pucheu, essa massa uniforme é o que possibilita enxergar um vazio. Há no cotidiano algum vazio que não percebemos – seria preciso ser ainda mais cotidiano do que aquilo que se é enquanto estamos no cotidiano para percebê-lo. Nas palavras de Pucheu:

Há um ponto cego nos poemas
como há um ponto cego na vida 10

Se quisermos substituir a palavra cotidiano, encontraremos nos dicionários de sinônimos a palavra anfêmero. Se o efêmero é aquilo que não dura um dia, o anfêmero é aquilo que se encontra ao redor dos dias. De alguma forma, há um parentesco entre o cotidiano, tal como apresentado pelo poeta, e o anfêmero. Ele se desvenda na nervura do cotidano, naquilo que o comanda secretamente, cuja suspeição demanda uma atenção extra ao que está ao redor. Pôr-se à escuta, tarefa antiga da poesia oral (o ouvido é o melhor mestre), ou ler com os olhos fechados.

O primeiro poema do livro de Alberto Pucheu deveria ser lido duas vezes, pois ele se encaixa de maneira cíclica na arquitetura da obra. Ao principiar o livro, ele anuncia a série de poemas que têm como tema mais aparente a vida dos surfistas que praticam o tow-in, e anuncia a imersão no cotidiano; ao “terminá-lo”, ele sugere uma imersão muito mais profunda e perigosa – a imersão na perdição:

É preciso aprender a ficar submerso, a não
falar, a não gritar, a não querer gritar
quando a areia cuspir navalhas em seu rosto,
quando a rocha soltar britadeiras
em sua cabeça, quando seu corpo
se retorcer feito meia em máquina de lavar,
é preciso ser duro, é preciso aguentar,
é preciso persistir, é preciso não desistir.
É preciso aprender a ficar submerso
por algum tempo, é preciso aprender
a aguentar, é preciso aguentar
esperar, é preciso aguentar esperar
até se esquecer do tempo, até se esquecer
do que se espera, até se esquecer da espera,
é preciso aguentar ficar submerso
até se esquecer de que está aguentando,
é preciso aguentar ficar submerso
até que o voluntarioso vulcão de água
arremesse você de volta para fora dele.11

De certo modo, Pucheu permanece com a tarefa que tomou para si desde seu primeiro livro, Na cidade aberta, e a que soube dar um nome melhor em uma recente coletânea de seus livros. A tarefa de desguarnecer as fronteiras, e permitir a invasão bárbara.

 


1 Mais cotidiano que o cotidiano, p. 9.
2 Pucheu se refere em seu livro a essa técnica surfista de se colocar em ondas colossais, que oferecem
risco de morte, e que não seriam possíveis sem a ajuda de um jet-ski para colocar o atleta na onda, e para
retirá-lo de lá (não sem risco para o seu parceiro motorizado).
3 Mais cotidiano que o cotidiano, p. 31.
4 Idem.
5 Na cidade aberta, em A fronteira desguarnecida (Azougue, 2007), p. 15.
6 Ibidem, p. 29.
7 Mais cotidiano que o cotidiano, p. 35.
8 Em Poesia total (Companhia das letras, 2014), p. 114.
9 Mais cotidiano que o cotidiano, p. 87.
10 Mais cotidiano que o cotidiano, p. 86.
11 Mais cotidiano que o cotidiano, p. 10.

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