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O amadurecimento dado a mim por um jornal

dezembro, 2014

Xu Lizhli foi um poeta chinês contemporâneo. Ele se suicidou no dia 30 de setembro desse ano, quando ainda tinha apenas 24 anos. Trabalhava na empresa originada em Taiwan, Foxconn – que tem em seu histórico dezenas de tentativas de suicidio por seus funcionarios. Sua poesia tem o sentimento de exploração e de falta de significado que grande parte dos trabalhadores chineses contemporâneos carrega. No início de 2014, Xu saiu da Foxconn para morar em outra cidade, Suzhou, onde havia diversas bibliotecas públicas. O chinês gostou da mudança, mas nem tudo saiu como planejado: Xu não conseguiu um emprego e teve que voltar para a Foxconn. Na fábrica, Xu Lizhli trabalhou até o fatídico dia 30. Abaixo estão alguns de seus poemas, traduzidos do inglês.

 

Conflito

Eles dizem
que eu sou um garoto de poucas palavras
isso eu não nego.
Mas, na verdade,
se eu falo ou não
com essa sociedade
eu ainda
conflito

07/06/2013

 

Adormeço assim desse jeito

O papel diante de meus olhos amarela
com uma caneta de aço eu gravo em preto desigual
cheio de palavras de trabalho
oficina, linha de montagem, máquina, cartão de ponto, hora extra, salário…

Me treinaram a ser dócil,
não saber como gritar, me rebelar
reclamar, denunciar
somente como sofrer em silenciosa exaustão.
Quando eu pisei pela primeira vez nesse lugar
eu esperava somente pelo comprovante cinza de pagamento, no décimo dia de cada mês
para me conceder algum consolo tardio.
Para isso eu tive que destroçar meus limites, destroçar minhas palavras.
Recusa em faltar o trabalho, recusa na ausência por motivos de saúde, a recusa de sair por motivos pessoais, recusa de se atrasar, recusa de sair mais cedo.
Na linha de montagem eu me mantive em pé feito ferro,
as mãos em vôo.
Quantos dias, quantas noites
eu, exatamente assim, me mantive em pé e adormeci?

20/08/2011

 

Um parafuso caiu no chão,
nessa noite fria de hora extra.
em queda* vertical, tinindo baixinho.
não vai chamar a atenção de ninguém,
exatamente como na última vez
que em uma noite dessas
alguém desabou* no chão.

09/01/2014

 

Um tipo de profecia

Os velhos da vila dizem
que eu lembro meu avô quando jovem
eu não reconhecia isso
mas ouvindo isso de novo e de novo
me convenceram.
Meu avô e eu compartilhamos
expressões faciais,
temperamentos, hobbies,
quase como se viéssemos do mesmo ventre
eles o apelidaram de “mastro de bambu”
e a mim de “cabideiro”.
Ele geralmente engolia seus sentimentos
eu, geralmente, sou obediente
ele gostava de charadas,
eu de premonições
no outono de 1943, os demônios japoneses invadiram
e queimaram meu avô vivo
aos vinte três anos.

esse ano, eu completo vinte e três.

18/06/2013

 

O último cemitério

Até mesmo a máquina cochila
oficinas seladas guardam ferro doente
salários escondidos atrás das cortinas
como o amor que os jovens trabalhadores enterram no fundo de seus corações.
Sem tempo pra expressão, a emoção se esmigalha em pó
eles tem estômagos forjados a ferro
cheio de ácido denso, sulfúrico e nítrico
a indústria captura suas lágrimas antes que tenham a chance de cair
o tempo voa, suas cabeças se perdem na neblina
a produção pesa , a dor faz hora extra dia e noite
em suas vidas, a tontura diante o tempo é latente
a dança que força a pele a descascar
enquanto pratos numa chapa de alumínio se fundem
alguns ainda persistem, outros são tragados pela doença
eu cochilo entre os dois, guardando
o cemitério de nossa juventude.

21/12/2011

 

A jornada da minha vida está longe de se completar

Isso é o que ninguém esperava
a jornada da minha vida
está longe de acabar
mas agora está estagnada na metade do caminho.
Não é como se dificuldades similares
não existissem antes,
mas elas não vinham
tão de repente
tão ferozes
lutar repetitivamente
quando tudo é fútil.
Eu quero me levantar mais que qualquer um,
mas minhas pernas não vão cooperar
meu estômago não vai cooperar
todos os ossos do meu corpo não vão cooperar
eu posso somente jazer vazio
nessa escuridão
mandando um silencioso sinal de angústia, uma vez após a outra
só pra ouvir , uma vez após a outra,
o eco do desespero.

13/07/2014

 

Eu engoli uma lua de ferro
que eles chamam de prego
eu engoli todo esse esgoto industrial, esses documentos do desemprego
A juventude curvada perante as máquinas morre antes da hora
eu engoli a pressa e destituição
engoli pontes de pedestres, vida coberta de ferrugem
eu não consigo mais engolir
tudo que engoli agora jorra da minha garganta
e se espalha pela terra dos meus ancestrais
num poema desgraçado.

19/12/2013

 

Quarto alugado

Um espaço de dez metros quadrados,
confinado** e úmido, sem luz do sol o ano todo
aqui eu como, durmo, cago e penso
tusso, tenho dor de cabeça, envelheço,
adoeço mas falho em morrer
embaixo da opaca luz amarela eu, novamente, olho o vazio,
gargalho como um idiota
ando pra trás e pra frente, cantando baixo, lendo e escrevendo poemas.
Toda vez que eu abro a janela ou o portão de vime,
eu pareço um homem morto
abrindo devagar a tampa do caixão.

2/12/2013

 

Em meu leito de morte
Eu quero dar mais uma olhada no oceano,
contemplar a vastidão de lágrimas de metade de uma vida.
Eu quero subir outra montanha,
tentar chamar a alma que eu perdi.
Eu quero tocar o céu, sentir seu azul tão leve.
Mas eu não posso fazer nada disso,
então eu vou partir desse mundo.
Todos que ouviram falar de mim
não devem ficar surpresos com a minha partida.
Muito menos você deve sofrer e lamentar,
Eu estava bem quando cheguei, e bem quando parti.

30/09/2014

 

Ao ouvir a notícia do suicídio de Xu Lizhi
por Zhou Qizao (周启早), companheiro de trabalho na  Foxconn

A perda de toda vida,
é a morte de outro eu.
Outro parafuso se solta,
outro irmão emigrante e trabalhador se joga.
Você morre no meu lugar,
eu continuo a escrever, no seu.
Enquanto o faço, apertando os parafusos
nossa nação completa sessenta e cinco anos,
nós desejamos ao país celebrações jubilosas.
você com seus vinte e quatro anos de pé no porta retrato,
sorri sempre tão modesto.
ventos de outono e chuvas de outono.
Um pai grisalho,
trazendo a urna preta com suas cinzas,
tropeça a caminho de casa.

1/10/2014

 


* O verbo usado em inglês (plunge) quer dizer cair, pular ou mergulhar rápido e violentamente. Usei ‘em queda’ e ‘desabou’ por que achei mais sonoro.

** O termo usado (cramped) tem tanto o sentido de ‘restrito’ e/ou ‘confinado’ como ‘ter/sentir cãimbras’. Não sei qual dos dois se aproxima mais do termo em mandarim, fiquei com ‘confinado’, novamente, por achar mais sonoro.

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